Publicado na Rede Brasil Atual.
POR PAULO DONIZETTI DE SOUZA
O rótulo de “maldito” talvez seja um dos mais desencaixados da história da música brasileira. Nessa categoria foi incluído um seleto grupo formado por gente como Tom Zé, Jards Macalé, Jorge Mautner, Sérgio Sampaio, Torquato Neto, Luiz Melodia, Walter Franco e, mais tarde, Itamar Assumpção. Cada um tinha estilo próprio, e o que os unia sob o rótulo, que com o tempo acabou ganhando conotação positiva, era sua inventividade – no estilo das letras e na profusão de ritmos e arranjos – que desafiava a indústria fonográfica, as paradas de sucesso e que, não fosse o impulso solidário de intérpretes consagrados, estaria relegada à margem da produção cultural.
Foi assim com Pérola Negra, faixa que dá título ao primeiro álbum de Luiz Melodia, lançado em 1973 para a eternidade da música do mundo. Depois de receber a indicação de poetas como Wally Salomão e Torquato Neto, Gal Costa gravou a canção que começou a elevar Melodia à antologia da MPB. No entanto, o artista não se dobrou ao complicado mundo da indústria do disco e sempre se manteve fiel ao seu próprio rigor criativo.
“Mesmo que seja de quatro em quatro anos, mas que eu possa fazer um disco de nível bom, está tudo bem”, dizia ele, em uma entrevista ao escritor Ademir Assunção publicada na Revista dos Bancários de fevereiro de 1999.
Para ter Juventude Transviada incluída na trilha sonora da novela Pecado Capital, a Globo acabou por lançar pelo seu selo, Som Livre, um álbum inteiro de Luiz Melodia – Maravilhas Contemporâneas (1976), outra obra singular e para a eternidade da MPB. O LP traz entre suas 11 faixas uma combinação harmônica do mais puro samba ao mais refinado jazz, como se pandeiros, tamborins, cuícas, trompetes, trombones tivessem nascido desde sempre uns para os outros, amarrados pela guitarra de Perinho Santana e o violão de Renato Piau – o estilo com que Piau maneja as cordas, aliás, explica um pouco da singularidade que marca as canções de Melodia desde sempre.
Ainda que tenha se tornado uma classificação algo cult no cenário musical, o rótulo “maldito” não satisfazia o compositor carioca. “Logicamente não é agradável. Nem é desagradável, porque tenho minha força, estou me mantendo com meu trabalho. Já fiquei magoado algumas vezes, mas tenho de trabalhar. Não posso ficar forçando a barra, descaracterizando o trabalho para que a mídia veja. Eles têm de prestar mais atenção. De repente me rotulam de inúmeras formas, o que vou fazer? Trabalho pra caramba.”
E quando a crítica começa a perturbá-lo por um suposto distanciamento do samba em sua criação, o compositor vai lá e a destrói. Trabalhando pra caramba: Disseram no jornal-televisão/ Que eu não gosto mais de samba/ Jornal-televisão está no ar/ Mas eu sou bamba-bamba/ A lógica se move, deixa estar/ A luz do sol e a cor do mar não se fabricam/ Em minha veia corre um sangue a batucar”, responde ele em Felino, quinto disco da carreira, lançado já em 1983.
E tal como as vozes consagradas de Gal, Maria Bethânia (Estácio, Holly, Estácio) e Zezé Motta (Dores de Amores) foram generosas para impulsionar o início de sua obra, Melodia sempre foi igualmente generoso com todos os estilos que formaram o seu caráter musical.
Da Jovem Guarda, à qual deu timbre próprio e definitivo em Negro Gato (de Getúlio Côrtes), Broto do Jacaré e O Caderninho ((Roberto e Erasmo), ao mais puro samba, sempre presente em composições próprias e em homenagens clássicas. A Voz do Morro, de Zé Ketty, aparece já em seu terceiro disco, Mico de Circo (1978). E com Estação Melodia, álbum de 2007 em que ele é “apenas” intérprete, Melodia dá voz a obras mitológicas de Cartola, Ismael Silva, Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Monarco e Oswaldo Melodia, seu pai, também “sambista nas horas vagas”, como ele dizia.
Melodia se despediu nesta sexta-feira (4) depois de uma batalha árdua contra um câncer. E com um inventário dessa plenitude, Luiz Carlos dos Santos (1951-2017), nascido e criado na comunidade carioca de São Carlos, no Estácio, deixa uma herança rica e saborosa a todos os amantes de música feita e executada com respeito.
Cabe aos que aprendemos a amar seu estilo e sua obra o consolo de vê-lo transitar de um momento de dor e sofrimento para um descanso dos deuses. E agradecer por esse patrimônio a ser desfrutado sempre que a saudade bater. Nós precisamos aprender.