Pedro Mara, professor da rede estadual do Rio de Janeiro e diretor do CIEP 210 Mario Alves de Souza Vieira, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, certamente vem enfrentando o pior desafio de sua carreira docente.
Em julho, ele foi denunciado pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC) que formulou um vídeo, a partir de suas fotos pessoais, para acusá-lo de apologia às drogas, de manipulação com os estudantes e incentivo à baderna, como ocupação de escolas. Bolsonaro chegou a acionar o Ministério Público e pedir a exoneração do professor e cassação de seu mandato. O processo segue em andamento.
Casos semelhantes ao de Pedro são facilmente encontrados pelo País. É crescente o número de professores que vêm sofrendo algum tipo de perseguição por conta de suas práticas pedagógicas, o que evidencia a existência de um movimento que atua na contramão da autonomia docente.
Em Uruguaiana (RS), situação parecida foi vivenciada pela professora da rede municipal Rosângela Rehermann. A docente realizou uma aula de cidadania na escola e orientou a produção de alguns cartazes, que foram posteriormente utilizados pelo vereador Eric Lins Gripo (DEM) como exemplo de doutrinação em uma audiência pública. Em junho, a docente foi convidada a ir para outra escola.
Na mesma época, em São Paulo, chegava ao fim a atuação do professor Thiago de Souza Lima em uma escola particular de ensino fundamental e médio. O professor de História começou a ser chamado de radical e polêmico no contexto da polarização política.
A situação piorou quando ele apoiou uma iniciativa dos estudantes de montar uma assembleia e discutir problemas comuns ao estabelecimento. “Cheguei a ouvir da direção que eu os tinha incitado a criar aquela instância”, conta o docente que pediu demissão.
As histórias não se limitam aos ambientes escolares. A professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Natalia Pietra Mendez, também viveu situação vexatória ao ministrar uma palestra sobre a cultura do estupro a convite da própria instituição.
A docente foi ameaçada em suas redes sociais e chegou a ter fotos pessoais divulgadas em páginas que fazem apologia à cultura do estupro.
Sua atuação na universidade, no entanto, não foi interrompida. “Temos que falar cada vez mais sobre o assunto. Isso é fruto de um pensamento ultraconservador que tem como alvo o feminismo”, atesta a educadora que estuda as questões de gênero.
Falsos conceitos
Para o professor da Universidade Fluminense (UFF), Fernando Penna, os casos são influenciados por dois fatores. Um são as tensões existentes acerca das questões de gênero, que se acirraram já na época da votação dos planos de educação nacional, estaduais e municipais.
“As pessoas que tentam deslegitimar essa discussão cunharam o termo ideologia de gênero, que vem sendo associado a destruição das famílias, doutrinação de crianças, erotização da juventude e interferência na orientação sexual de jovens”.
O especialista relembra o episódio do veto ao material educativo produzido pelo Ministério da Educação ‘Escola sem Homofobia’, em 2011, que acabou sendo chamado por setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional de ‘kit gay’. “A ideologia de gênero é utilizada para causar esse pânico moral”.
Em sua análise, soma-se a isso a agenda do Escola sem Partido, programa criado em 2004 pelo procurador de Justiça de São Paulo, Miguel Nagib, que defende a ideia de uma “educação neutra” a partir da justificativa de que as escolas seriam locais de doutrinação, em parte praticada pelos professores que se aproveitam da audiência cativa de seus estudantes para impor suas ideias.
Fora da lei
Desde o surgimento do Escola sem Partido, outros 56 projetos de lei foram derivados nos âmbitos federal, estadual e municipal. O levantamento foi feito pela pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernanda Moura, também autora da pesquisa de mestrado “Escola sem Partido”: relações entre Estado, educação e religião e os impactos no ensino de História”.
A maioria deles, no entanto, não tem poder de lei. Salvo algumas exceções como o município de Santa Cruz do Monte Castelo, no norte do Paraná, que aprovou e implementou a lei já no início de 2015; e o município de Picuí, na Paraíba.
No âmbito estadual, Alagoas chegou a aprovar a lei estadual (Lei 7800/2016), conhecida como “Lei da Escola Livre” foi Alagoas, mas ela foi suspensa via liminar pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, em março deste ano.
Ainda assim, nota-se certa aderência das propostas em diferentes territórios. Para Fernanda, isso se deve, em parte, a falta de entendimento da sociedade sobre os processos políticos. “As pessoas acham que PL é lei, não entendem que esse conjunto de normas deve ser votado para se efetivar”, observa.
Para ela, é fundamental garantir esse espaço de debate nas escolas, “para evitarmos que as pessoas saiam repetindo os discursos de parlamentares”.
Uma questão de direito
O professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, entende que é preciso resgatar a concepção do direito a educação para analisar os casos.
“O direito a educação no Brasil foi entendido dentro de uma agenda de ação positiva, que diz respeito a oferta da educação, acesso a escolas, expansão das redes, etc. Se esquece que compõe esse direito, com igual importância, os princípios constitucionais de liberdade na educação, que consideram a liberdade de ensinar, de aprender, pesquisar e divulgar o pensamento e trabalhar pelo pluralismo de ideias e concepções”, esclarece.
Esses direitos, conforme explica Ximenes, conferem autonomia aos docentes e às escolas. “Sobre eles não deve haver interferência do Estado e dos atores privados. Caso haja, no entanto, o Estado tem que atuar no sentido de assegurá-los”, explica, enfatizando a inconstitucionalidade de medidas que restrinjam o direito à liberdade.
O especialista também comenta sobre os instrumentos jurídicos disponíveis para assegurar proteção aos docentes e às escolas frente à estratégia de intimidação utilizada pelo Escola sem Partido.
De maneira geral, a orientação é que as respostas às denúncias não sejam feitas no âmbito individual e considerem três dimensões principais.
“A primeira delas é a dimensão política, ou seja, a defesa deve buscar apoio de sindicatos ou instâncias administrativas, como a própria Secretaria da Educação; a segunda é a pedagógica, que prevê a mediação de diálogo ou oferta de debates junto às famílias e comunidades para esclarecer algumas questões; por fim, a dimensão jurídica, que pode levar a desdobramentos nas instâncias criminais, como abuso de poder em caso de autoridades, e nas instâncias administrativas, no caso de agentes públicos que extrapolem suas funções”.
Outros enfrentamentos
Para Fernando Penna, outro caminho possível é o da resistência a partir de articulações e debates na sociedade. Nesse contexto, foi lançado em junho o Movimento Educação Democrática (MDE), do qual Penna é presidente.
A iniciativa é um desdobramento do Professores Contra o Escola sem Partido, iniciativa que teve início na UFF e cuidou de enfrentar a pauta em debates, seminários e audiências públicas. No entanto, no atual contexto de retrocessos educacionais, se sentiu a necessidade de ampliar o escopo de atuação, o que levou à criação do MDE.
“Além de dar um caráter mais institucional ao que já fazíamos, o Movimento quer, para além da crítica, estruturar uma agenda mais propositiva, um posicionamento político, construído a partir do diálogo com os associados – atualmente são cerca de 500 – e da articulação nacional com grupos organizados.
Uma das aproximações, nesse sentido, se deu com a Frente Gaúcha Escola sem Mordaça, lançada em Porto Alegre, em 2016. Além de trabalhar para o arquivamento dos projetos derivados do Escola sem Partido, o grupo, que reúne movimentos, entidades e coletivos, também organiza um enfrentamento a pautas como racismo, machismo, homofobia e demais preconceitos que interditam a faceta democrática da educação.
Texto originalmente publicado no site Carta Educação.