Publicado no Outras Palavras.
POR FRAN ALAVINA
“Eu Sou a Alternativa”! A afirmação poderia ser o título de um melodrama cinematográfico, ou de um destes inumeráveis livros-placebos. Trata-se, porém, de frase de efeito, que poderá ser slogan de campanha, proferida por Ciro Gomes em uma das suas últimas e constantes aparições públicas. O mais eminente político do clã Ferreira Gomes, após a condenação de Lula em primeira instância, inicia uma nova etapa de sua estratégia para a disputa da presidência da república.
Independentemente do que poderá ocorrer nesses tempos políticos frenéticos, é certo que está nova etapa descortinará um aspecto de Ciro que, para muitos, especialmente os não cearenses, parecia não existir, ou quando muito seria apenas uma mistificação falaciosa de seus opositores. Um Ciro que pela gênese da sua vida política institucional ainda não se desfez completamente dos resquícios de personalismo herdados de um difuso coronelismo arraigado na estrutura social do Ceará.
Não se quer com isso afirmar que ele seja um coronel no sentido clássico do termo, mas que sua ação política ao longo do tempo guarda um certo hibridismo: um misto de velhas práticas combinado com um discurso que toma para si a tentativa de pensar um novo projeto de país. Ao contrário do que pode parecer, quando se ouve uma de suas falas públicas – sinceras na crítica das perversidades do ideário neoliberal – não se pode identificar uma atuação política pura em relação ao seu discurso. Isto é, no compasso entre o discurso e a prática há um átimo de tempo no qual é possível ver este hibridismo, que no último ano esteve mais sufocado à medida que Ciro se dirigiu para um público mais à esquerda, particularmente na sua denúncia do golpe.
Ciro Gomes é um híbrido político gestado em condições histórico-sociais bem particulares – ou seja, nas condições específicas da política do Ceará em sua longa duração. Ela se diferencia de outros coronelismos do Nordeste que não alcançaram a fase híbrida como, por exemplo, o clã Sarney no Maranhão e os Magalhães na Bahia.
Estas duas oligarquias não foram capazes, apesar das condições materiais, de criar herdeiros políticos que pudessem se sobressair mais por suas qualidades intelectuais, ou destreza discursiva, do que pelo sobrenome. É quase impossível que um dia possamos ver Roseana Sarney ou o neto de ACM debater, em alto nível, política com cientistas políticos; ministrar palestras sobre a saúde fiscal dos entes federativos; ou mesmo rebater renomados economistas em universidades estrangeiras.
As legitimidades destes clãs políticos fundamentam-se, em grande parte, apenas no sobrenome que carregam. Tal não ocorreu no curso histórico político do Ceará. Deste curso vem a especificidade do híbrido Ciro Gomes. É preciso ter claro tal aspecto, pois em política, nunca se é apenas aquilo que se auto afirma no discurso. É preciso retroceder no tempo, e entender a constituição política do estado do Ceará para se entender a gênese do hibridismo.
Ora, no Ceará, o encontro entre as oligarquias que exerciam seu poder com base no mando do interior do Estado e os setores urbanos da capital nunca foi dos mais brandos – e dele resultou a marca constitutiva da política estadual. Em 1912, a oligarquia Nogueira Accioly foi deposta pelos setores médios e pela burguesia da capital, que se modernizava e via a si mesma como mais preparada para gerir o aparelho estatal. Nesse sentido, Fortaleza, por meio de suas elites, passou a se identificar como a cidade insurgente que não se submetia aos desmandos políticos de um interior atrasado e oligárquico. Esta burguesia fortalezense buscava não apenas a hegemonia política, mas também a hegemonia da narrativa histórica e do aparato simbólico.
Depois da queda dos Accioly e a retomada do poder pelos coronéis unidos em torno da figura do Padre Cícero, os dois setores – burguesia da capital e forças políticas do interior – nunca deixaram de disputar o poder, porém sem conflitos armados e com pactos temporários de benefícios recíprocos. Foi assim, por exemplo, durante a ditadura: os coronéis militares que governaram o Estado, em parte, pertenciam a tradicionais famílias do interior.
É no meio destes pactos que surge o pai daquele que apadrinhou politicamente Ciro Gomes – apadrinhamento para que ele pudesse ter maior alcance na política estadual, isto é, ganhar nome na capital Fortaleza. Ciro é filho e sobrinho de político, algo que não é demérito na sua história pública, porém é um dos signos mais expressivos de como o poder político no Ceará é feito por poucos. Seu padrinho foi o atual senador Tasso Jereissati, filho do já falecido político e homem de negócios Carlos Jereissati. A família Jereissati é a melhor representante da burguesia da capital e de seu pacto de não enfretamento com as grandes famílias do interior. Este acordo tácito é tão potente na história política do Estado, que se fez sentir na época da redemocratização.
É neste período que o jovem Ciro Gomes, vindo da família que politicamente até hoje comanda os rumos de Sobral (a segunda maior cidade do interior do Estado), é “ungindo” por Jereissati. Ciro chega a governar o Estado, precedido por Tasso Jereissati e após ser prefeito de Fortaleza — portanto deslocando sua imagem de simples membro de uma família politicamente mandatária do interior. Porém, esse deslocamento é apenas aparente. No acordo entre Jereissati e Ferreira Gomes renovou-se o vínculo entre uma família política de grande peso no interior do Estado e a burguesia da capital. Portanto um modo de fazer política que se assenta em velhas práticas, mas que precisa renovar suas estruturas para seguir ativo. É deste aspecto que nasce o caráter híbrido de Ciro.
Ademais, é preciso compreender o coronelismo não apenas como uma prática política. O coronelismo se alimenta do personalismo, e sem ele não perduraria, pois é o caráter individual que reforça a política do mando e do compadrio, enfraquecendo o caráter institucional. Ao fim, as relações de classe e as instituições são escamoteadas como elementos constituintes da vida política.
O personalismo é um dos traços mais duradouros que o coronelismo institucional deixou na vida política do Ceará. Este caráter personalista vem à tona em discursos de Ciro Gomes nos quais a questão econômica não é o assunto principal. Por exemplo: quando em entrevista diz que receberia “na bala” uma ordem judicial arbitrária. Não se tratava apenas de resistência ao injusto — mas de confirmar a aderência ao seu discurso da figura do cabra macho, valente, que debate economia e direito constitucional, mas também fala grosso. Por mais de uma vez, Ciro disse ser preciso operar na presidência da República com “rigor” e com “pulso”, como no caso de debelar, segundo ele, “a parte quadrilha do PMDB”, enaltecendo assim as “virtudes” privadas do ocupante do posto em detrimento do caráter institucional do cargo.
Nessa visão, o bem público dependerá de quão “másculo” for aquele que estiver no posto eletivo, e Ciro já dá mostras de querer afirmar tal aspecto, algumas vezes confundindo altivez com rispidez. A manutenção de um cenário cada vez mais polarizado, que na sua visão se tornará maior caso Lula se candidate de novo, fortalecerá este tipo de postura personalista, na qual o caráter individual tende a se sobrepor, escamoteando, por exemplo, as questões de classe.
Este caráter personalista parece ser a ordem do dia, pois o mesmo pode-se depreender de figuras como Bolsonaro e Dória. Em um, a qualidade pessoal é ser “gestor”; no outro, segundo seus seguidores, tratar-se-ia de um mito — portanto, alguém com qualidades individuais acima do comum. Nestes dois casos há a negação da política por meios distintos: na submissão do político a uma pretensa gestão racional-eficaz, por um lado; por outro, na substituição dos meios institucionais pela força. A isto, soma-se a dissimulação no caso do prefeito que se desfaz dos bens que deveria gerir; no deputado federal, o protofascismo centrado no culto de uma personalidade medíocre disfarçada como competente. Nos dois embustes políticos, o personalismo é maior, pois nem mesmo aparece qualquer menção a uma política de pacto ou conciliação.
No caso de Ciro, na frase “eu sou a alternativa”, aparece o termo chave do seu caráter personalista. Ele diz ser necessário “criar um novo pacto entre quem trabalha e quem produz no Brasil”. Nesta afirmação, repetida com maior frequência nos últimos meses, está a senha de como seria um futuro governo do presidente Ciro Gomes. À primeira vista, nada de novo. Estabelecer pacto entre quem trabalha e quem produz foi o que fez o PT – ou seja, uma política de conciliação de classes. A novidade está naquele que sela o pacto, isto é, naquele que celebra o acordo entre as partes contratantes, neste caso, entre as classes sociais distintas.
O pacto celebrado por Ciro, segundo se depreende de suas afirmações, teria maior razoabilidade e segurança que o anterior, pois dotado de um discurso inteligível sobre os rumos econômicos; e, tendo por árbitro do pacto alguém que se posiciona fora da disputa de classes. Dizendo-se não pertencente a nenhuma das classes – nem “produtora”, nem trabalhadora – pretende mostrar-se como parte neutra. Diferente da conciliação anterior, no qual o fiador do pacto pertencia indiscutivelmente à classe trabalhadora.
Ora, mas tentar posicionar-se fora das classes para arbitrar um novo pacto é uma dissimulação. Não há neutralidade possível na pactuação, só há pacto porque há interesse distintos – portanto, ou se está de um lado ou de outro. Ademais, quanto mais fora da disputa de classe mostrar-se o fiador do novo pacto, isto é, dizendo-se nem de direita, nem de esquerda, mais obscuro será para nós de que lado o fiador pesará sua mão: em favor dos que acumulam grandes perdas, ou com aqueles que acumulam benefícios a qualquer custo?
Nesse sentido, há de se perguntar: a opção pelo híbrido poderá ser viável, ou será apenas mais um desvio momentâneo para não enfrentarmos as mazelas dos nossos esvaziamentos institucionais, depositando nossas expectativas em outros personalismos? Se Ciro pretende ser o fiador de um novo pacto, primeiro precisa dar mostras mais claras de que não será um pactuador tendencioso. Inclusive por sabermos, a partir do pacto que marca sua gênese política, que neutro ele não é.