Publicado no Jornal Extra Classe.
Economista, professor e um dos mais respeitados pesquisadores sobre a concentração de riqueza no mundo, Antonio David Cattani está lançando um novo livro. Em Ricos, podres de rico (Tomo Editorial, 64 páginas), disseca de forma didática e acessível – “sem economês”, salienta – como o aumento da riqueza nas mãos de poucas empresas ou pessoas é um risco à democracia, além de uma ameaça ao próprio capitalismo. “A crise de 1929 foi provocada pelo mesmo fenômeno que estamos observando agora. Em um, dois anos, vamos ultrapassar aquele patamar de concentração. É a crônica de um desastre anunciado”, diz nesta entrevista ao Extra Classe.
Extra Classe – O senhor estuda a concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas há pelo menos dez anos. A que conclusões chegou nesse período?
Antonio Davi Cattani – Meu argumento é que a concentração de renda com a existência de multimilionários é nefasta para a economia e para a democracia. Para a democracia parece evidente, gera corrupção, tráfico de influência. Mas na economia persiste uma discussão sobre a importância de se acumular riqueza antes de distribuí-la. Em outras palavras, a tese de que a concentração de renda criaria mecanismos de maior eficiência econômica para investimentos produtivos que gerassem mais empregos e oportunidades. Bem, dez anos depois posso afirmar que isso é uma falácia. Uma mentira deslavada. Um discurso dos ricos, que querem apenas justificar seus rendimentos e seus privilégios.
EC – Não se trata de um fenômeno do capitalismo brasileiro?
Cattani – Não, de jeito nenhum. Em nenhum capitalismo, em nenhum lugar, a acumulação volta para a sociedade. Em outro livro (A Riqueza Desmistificada, 2007) eu analiso a situação dos Estados Unidos, onde há uma redução de impostos para os mais ricos, desde o primeiro governo de Bill Clinton (a partir de 1993) até o Barak Obama. Mostro ali que, ao contrário do que justificam os teóricos da concentração, não há mais investimentos, mas apenas mais especulação, o que gera instabilidade econômica e mais consumo de produtos de alto luxo, iates, jatinhos, viagens ao espaço. Os podres de rico têm tanto dinheiro que em determinado momento surge a seguinte questão: investir mais para quê? Para se incomodar contratando mais gente? Se eu posso ganhar dinheiro, muito dinheiro, com isenções, com privilégios fiscais? No caso brasileiro, que você menciona, o agravante é que a concentração de riqueza permite comprar, entre outras coisas, o próprio Congresso. Dou o exemplo da JBS, que investiu milhões de reais, centenas de milhões de reais, em todos os partidos, por uma razão bem objetiva: defender seus privilégios. Os bancos, a indústria farmacêutica, o ensino particular, o agronegócio, todos usam essa estratégia. Isso é um atentado à democracia.
EC – Qual a relação possível dessa concentração de riqueza com a nossa atual crise política?
Cattani – Total. O golpe do ano passado foi todo financiado por essa concentração, por esse poder econômico nas mãos de poucos. Não estamos falando do empresariado em geral, há empresários sérios e comprometidos com resultados, que cumprem as leis, mas do grande capital, dos grandes conglomerados que têm um controle estrito sobre a política e também sobre a mídia.
EC – O que isso tem a ver, por exemplo, com a condenação do ex-presidente Lula? Há alguma relação?
Cattani – Sim e não. Por um lado, a concepção da chamada República de Curitiba segue esse padrão concentrador: um pessoal forjado nos Estados Unidos, com uma mentalidade antipopular e elitista, cuja visibilidade se deve ao apoio dos grandes grupos econômicos, que contamina principalmente a classe média. Dou um exemplo: a indústria farmacêutica não suportou a ideia de uma medicina preventiva, desenvolvida nos governos do PT. O ideal, para esse segmento, é deixar as pessoas adoecerem para vender remédios. Outro exemplo: o ingresso de alunos das classes mais baixas na universidade pública, que provocou indignação em muitas áreas específicas. Isso evidentemente está associado com concentração de renda e espírito elitista. Mas não é uma exclusividade brasileira, a concentração de renda ocorre em todo o mundo, até na Suécia – que era um modelo clássico de distribuição – o que não remete à criminalização do ex-presidente Lula. De modo geral, a concentração está se acentuando nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra.
EC – Desde quando?
Cattani – Desde os anos de 1980. Basicamente devido à mobilidade do capital financeiro obtida a partir da tecnologia da informação. O poder desse pessoal, o poder desses podres de ricos, só aumentou. Eles compram, corrompem, criam leis, privilégios, isenções. E quando tudo dá errado, dão um golpe de Estado ou, se não for possível, mandam o dinheiro para fora e o reintegram à economia quando as coisas estiverem melhores. Essa história de que os investidores estrangeiros estão voltando ao país, por exemplo, é mais uma balela. É tudo capital brasileiro, nacional, capital que está lá fora, que foi obtido de forma ilegal, que está sendo repatriado.
EC – Por que tão poucos pesquisadores estudam a riqueza na academia?
Cattani – Porque é muito mais fácil trabalhar com a pobreza, com os pobres. Entrevistar um papeleiro, um operário, um gerente de fábrica, é tranquilo. Agora, vai tentar entrevistar um grande empresário, vai perguntar ao (Jorge) Gerdau por que ele levou a sede do seu grupo econômico para Amsterdã (Holanda). Primeiro, você não chega perto dele nem com uma agenda especial, de pesquisador. Depois, a informação essencial é protegida, não se torna pública de jeito nenhum. Eu escrevi um artigo sobre fraudes corporativas e apropriação de riqueza que não consegui publicar no Brasil, apenas no México (na revista Convergência), em 2009. Isso que tinha apenas informações públicas.
EC – Que dados o senhor usa em suas pesquisas, diante da dificuldade de se obter informações confiáveis do mundo corporativo?
Cattani – Temos de usar apenas dados públicos, pois não há outra maneira. Temos que usar o que aparece por aí, reportagens, balanços, estudos. Algumas ONGs fazem trabalhos ótimos de investigação. Um desses levantamentos, por exemplo, conseguiu identificar evasão de divisas por grandes empresas exportadoras: as companhias que comercializam commodities vendem oficialmente por um preço abaixo da cotação internacional e recebem a diferença, digamos 20%, 30% do valor de face, diretamente em contas no exterior. Exportam com subfaturamento e recebem a diferença diretamente em paraísos fiscais.
EC – Isso não é lavagem de dinheiro?
Cattani – Sim. E corrupção também, porque é uma operação que precisa ser camuflada de alguma forma.
EC – Operações como Lava Jato e Zelotes podem ajudar a moralizar esse ambiente empresarial?
Cattani – Essa é uma outra questão que precisamos desmistificar: qual foi, por exemplo, o rombo causado na Petrobras apurado pela operação Lava Jato? R$ 10 bilhões? Mas qual o montante de sonegação das grandes empresas brasileiras, a cada ano? É da ordem de R$ 300 bilhões, segundo o sindicato dos auditores fiscais. Talvez R$ 500 bilhões, não se sabe ao certo. Por ano. Na fusão do Itaú com o Unibanco, uma taxação superior a R$ 25 bilhões acabou de ser anistiada pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) porque os conselheiros consideraram que não houve ganho de capital na transação. O Carf é o mesmo órgão onde foram registrados inúmeros casos de compra de votos, que envolvem, entre outros, grupos de mídia como RBS e Globo. É claro que isso nunca vai ser manchete porque eles, incluindo a mídia, se protegem. É um quebra-cabeças. Por que a Gerdau, que já mencionei aqui, foi para Amsterdã? Porque é um paraíso fiscal e, dessa forma, se resolve a questão sucessória. Aqui o imposto de transmissão patrimonial varia de 6% a 8%. Baixíssimo. Nos Estados Unidos, é de 40%. No Japão chega a quase 60%. Em Amsterdã é zero. Ou seja, nossos super-ricos não querem nem pagar o mínimo que a legislação do Brasil exige na transmissão de poder e de capital para os sucessores. Isso é lavagem de dinheiro, uma forma de manutenção da riqueza. É como se houvesse um mundo paralelo ao nosso, do qual nem chegamos perto. O problema é que esse mundo está acabando conosco.
EC – Além das cifras bilionárias, esse mundo paralelo envolve mais o quê?
Cattani – Impunidade, principalmente. E problemas de ordem moral, pois historicamente esse pessoal se safa em todos os processos, sejam administrativos, sejam criminais. Problemas ambientais, também, como a devastação da Amazônia. Pequenos posseiros existem desde sempre, mas o problema começa de fato quando há um grande investimento. Porque ele dificilmente não respeita as leis ambientais, e em geral corrompe a fiscalização. O posseiro que matou uma onça vai para a cadeia; o empresário que devastou quilômetros e quilômetros de floresta está viajando de jatinho para Miami. A concentração de renda se retroalimenta porque cria impunidade e privilégios em várias áreas.
EC – Nesse cenário, qual a perspectiva de solução?
Cattani – Precisamos de formação e de informação. As pessoas não sabem o que acontece, o trabalhador que paga impostos compulsoriamente acha que todo mundo paga também. A solução é simples: basta os ricos pagarem os impostos que devem.
EC – Mas como fazer isso?
Cattani – Sensibilizando a população, já que pela via legislativa ou pelo poder do Estado não tem como. Não com esse Congresso nem com esses governos. As pessoas têm que saber o que está por trás de determinadas decisões políticas. Um exemplo: pequenos empresários que aderem a essas campanhas por menos impostos precisam saber que os grandes empresários, que são seus ídolos, não pagam imposto. Quem paga é ele. Se todo mundo pagasse seus impostos corretamente, dentro dos padrões capitalistas normais, o equilíbrio seria muito maior.
EC – Para onde esse comportamento vai nos levar, na sua opinião?
Cattani – Para o desastre.
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