Publicado no Facebook de Luis Felipe Miguel, professor da UnB.
Quando meus pais se mudaram de volta para Florianópolis, fui matriculado no Instituto Estadual de Educação. Na época, já existia ensino religioso nas escolas públicas de Santa Catarina – foi antes da Constituição de 1988 introduzi-lo no Brasil todo. Ele era formalmente facultativo, então foi solicitada minha dispensa.
Mas não foi um processo automático. Minha mãe, que logo voltaria a lecionar no Instituto, graças à anistia política, foi convocada para várias reuniões, em que tentavam convencê-la de que, sem religião, eu estaria condenado a me tornar um bárbaro, um criminoso, um depravado, um amoral.
Enquanto isso, eu era obrigado a assistir às aulas. O professor era um padre cuja principal preocupação, ao menos no período que frequentei, era explicar que celibatário não significava o mesmo que gay. Acho que foi ele que acabou, por fim, me liberando das aulas. Minha presença na sala o incomodava terrivelmente.
Eu não fazia nada, apenas não participava das rezas e gastava o tempo desenhando no caderno. Quer dizer, eu desenhava em outras matérias também, mas fingindo que estava prestando atenção. Ali eu fazia questão de demonstrar que estava alheio.
Era um Brasil em que a hegemonia da Igreja Católica era ainda inconteste. Certamente eu tinha colegas espíritas, umbandistas, protestantes, mas eram uma minoria muito restrita e, sobretudo, não se dispunham a marcar posição.
Eu acabava sendo, então, o contra-exemplo ao que o padre-professor dizia, a encarnação do fato de que suas verdades não eram universalmente admitidas. Um (mau) exemplo vivo da possibilidade de liberdade de consciência.
Para mim, a história terminou bem. Dispensado da aula, tinha semanalmente um horário livre, que gastava lendo o que bem entendesse no pátio da escola.
O ensino religioso no Estado laico é uma excrescência. Se as famílias e as igrejas querem dar educação doutrinal às suas crianças, que o façam em seus próprios espaços. Ao interpretar a regra constitucional como sendo a necessidade de inculcação da “religiosidade”, o Supremo rasga a ideia da neutralidade estatal em relação aos diversos sistemas de crença.
O Estado laico no Brasil sempre foi meio vagabundo – tem invocação de Deus na Constituição, tem Deus na cédula, tem crucifixo nos tribunais, tem reza em escola pública.
Outro dia estive num posto de saúde e deparei com uma tela com a imagem de Jesus Cristo feita num estilo de imitação de Romero Britto, um negócio de fazer qualquer um enfartar. Mas a decisão do STF é um enorme passo atrás e joga todos os não-crentes na posição de párias.