O premiado Como Nossos Pais, de Laís Bodanzky, já recebeu inúmeras críticas, em geral muito positivas, mas nenhum jornalista enxergou no filme uma das inspirações da cineasta para compor a trama —que, de resto, trata da até aqui invencível herança brasileira do patriarcado.
É a história de Fernando Henrique Cardoso com Miriam Dutra, a jornalista da TV Globo que teve um filho cuja paternidade foi atribuída a ele.
“Essa história foi uma das inspirações sim. Passou por mim. Não só ela. Mas esta história ajudou a compor os personagens”, diz Laís, que também é autora do roteiro.
No filme, a mãe, uma socióloga de esquerda, decide contar à filha que, na verdade, o pai biológico dela é um homem com quem teve um caso em Cuba, e não o artista plástico que ela sempre viu como pai e a quem tanto ama.
Laís conta que, ao localizar esse ponto da história em Cuba, teve gente que pensou que a referência dela era José Dirceu, que viveu exilado na ilha. Sobre isso, Laís ri. “Não foi Zé Dirceu”, afirma.
A mãe retratada pela cineasta paulistana é uma mulher atormentada por culpas que carrega e da quais, por comodismo ou conveniência, nunca quis se livrar.
Aí reside uma semelhança com Miriam Dutra, que eu conheci quando fiz a série de reportagens sobre o caso, revelado por ela mesma.
No filme, o pai biológico de Rosa, a filha da socióloga de esquerda, é um ministro brasileiro visto como pré-candidato a presidente nas eleições que se realizarão dois anos depois.
É uma referência a Fernando Henrique.
Na vida real, em 1993, Fernando Henrique era ministro de Itamar Franco, Miriam deixou a TV Globo em Brasília e foi para uma espécie de exílio em Portugal.
Ela tinha tido um filho e sua mudança para a Europa poupou Fernando Henrique Cardoso do constrangimento de ver revelado ao eleitor conservador brasileiro que o pai era ele.
No filme, o pai biológico de Rosa, interpretado por Herson Capri, diz a filha que não há necessidade de DNA. Rosa é mesmo filha dele.
Por ironia da vida (ou não), Herson Capri faz o papel de um personagem que tem muito do real Fernando Henrique numa história que é de ficção, depois que recusou o papel de Fernando Henrique no filme sobre o Plano Real, supostamente baseado em fatos.
Ele não diz, mas é possível interpretar sua recusa como uma decisão de evitar associar sua imagem a um filme que foi propaganda do PSDB — cuidado que Marcelo Serrado não teve ao mergulhar de cabeça no Sergio Moro de mentirinha, no filme sobre a Lava Jato.
Herson Capri preferiu seguir o caminho das sutilezas, tão bem trabalhadas no filme de Laís Bodanzky.
Na vida real, Fernando Henrique Cardoso, preso às estruturas do patriarcado, é bem diferente do que foi apresentado no filme sobre o Plano Real.
Nos dois primeiros volumes do seu “Diários da Presidência”, Fernando Henrique não cita Miriam Dutra.
Uma possível referência indireta está num relato sobre uma manhã do final de 1997, quando ele diz que estava tendo “problemas domésticos”.
Não diz que problemas são esses — “não vale a pena” -, mas conta que interferiu no seu humor. Era a época em que Miriam Dutra quis voltar para o Brasil e foi convencida pelos diretores da Globo, por ACM e o filho dele, Luís Eduardo, amigo de Miriam, de que deveria adiar seus planos.
Nas memórias, Fernando Henrique trata de aventuras amorosas até do filho, Paulo Henrique, mas não fala das suas. Muito diferente, por exemplo, de Getúlio Vargas, que, em seu diário, não esconde a amante que teve.
Na biografia de Roosevelt, sabe-se que o presidente dos Estados Unidos teve um caso com a prima.
A vida como ela é.
Fernando Henrique preferiu outro caminho.
Mas, ator da esfera pública, não escapou de alguns olhares, como o de Laís Bodansky, que viu nele inspiração para compor personagens, num filme sobre as estruturas patriarcais que aprisionam mulheres como a socióloga de esquerda mãe de Rosa e Miriam Dutra, mãe de Tomás.