No último dia 10 de outubro, a Comissão de Direitos Humanos do Senado realizou audiência pública para debater o sistema de justiça brasileiro.
Uma das convidadas, a promotora de justiça Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), criticou de forma contundente a Lava Jato e seus integrantes, apontando diversos abusos da operação.
A fala de Lúcia Helena viralizou (veja abaixo). “Se um juiz é fotografado conversando no ouvido do opositor político do seu réu ou se o juiz vai aos jornais, como o presidente do TRF-4 o fez, para fazer apreciação de valor da sentença que ele vai julgar dizendo que a sentença do Moro é irrepreensível, ele já é suspeito”, falou.
O DCM conversou com Lúcia Helena Barbosa de Oliveira.
DCM – Em recente audiência pública no Senado sobre o sistema de justiça brasileiro e a busca de uma imparcialidade nos julgamentos, você disse que as vendas que representam a Justiça cega não existem…
Lúcia Helena Barbosa de Oliveira – A Justiça enxerga muitíssimo bem quem são os amigos e quem são os inimigos. Blinda os amigos e persegue os inimigos.
Você também falou na audiência que estava perplexa com o tema, “imparcialidade do juiz”. Por quê?
Minha perplexidade foi em ter que falar de uma coisa que eu sei que não existe. Porque a gente sempre julga com as opções que faz na vida. Então, é impossível apreciar um fato sem considerar, por exemplo, que você é branco, homem, membro de uma oligarquia, ou que foi ligado ao PSDB, ou que você é muçulmano, cristão etc.
É impossível se desvencilhar disso tudo. A minha perplexidade é, então, falar de uma coisa que, como teórica do direito, não existe. Não existe uma neutralidade.
Como avalia o comportamento de alguns integrantes da Lava Jato?
Essa pergunta remete a temas diversos dentro do direito. Num primeiro ponto, vou me limitar a aspectos mais gerais: o acesso à Justiça e o julgamento por um juízo imparcial. Ambos são direitos constitucionais fundamentais do homem, do cidadão, abordados também em diversas convenções internacionais. O Brasil assinou uma delas e se submete à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Num outro ponto já é a própria consideração sobre esses dois direitos, considerados fundamentais, que interessa. Eu abordo isso a partir de três linhas: uma sociopolítica, uma jurídica e uma terceira psiquiátrico-psicanalítica, que influencia as outras duas.
Na primeira vertente, eu diria que – levando-se em conta a extrema desigualdade social, a disparidade entre o que ganha um juiz, ou um membro do MP, e o salário mínimo – esses direitos parecem mais formalidade. Esse suposto acesso à Justiça parece gerar classes mais desassistidas.
Os membros do Judiciário e do MP usam uma linguagem rebuscada, em que tudo parece distante, misterioso, kafkiano. A própria postura, em si, é de alguém que se impregnou de uma falsa meritocracia, de um falso conhecimento: “eu estou nesta posição porque sou melhor do que fulano, beltrano e, provavelmente, melhor do que a pessoa que está sob meu julgamento”. Isso começa a revelar problemas entre a pessoa que exerce poder e autoridade e a pessoa que vai buscar justiça e, no meu entender, sai carregando injustiça.
No meu entendimento, a justiça não mora com o juiz. Buscar justiça num juiz é uma ilusão, porque a justiça mora no centro do injustiçado. É o injustiçado que guarda o sentido de justiça. O juiz é legitimado para dizer o direito. Dizendo o direito, nem sempre se alcança a justiça.
E a segunda?
A segunda vertente nota em recentes decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos a formação da chamada doutrina da aparência, que trata de juízo imparcial. Segundo essa doutrina, o juiz não deve apenas ser imparcial, ele precisa parecer imparcial.
Então, tornam-se muito importantes e delicadas as aparições públicas de juízes e outros operadores do direito. As entrevistas que dão, as declarações a respeito de envolvidos nos processos e de casos levados a eles. A Corte Europeia de Direitos Humanos não tem jurisdição no Brasil, mas poderíamos dizer que ordens nacionais europeias já começam a absorver, integrar, em suas decisões essa doutrina da aparência, que poderíamos chamar de exceção de parcialidade.
O Transforma MP, Coletivo de membros do Ministério Público do qual faço parte, apresentou duas ideias para absorver a Teoria da Aparência: primeiramente, poderia se alargar o rol de situações de impedimento para a declaração de parcialidade do juiz, acrescentando a exceção de parcialidade às exceções de suspeição e de impedimento, já previstas no Brasil.
Por exemplo, o Tribunal Constitucional da Espanha, que está submetida à Corte Europeia, decidiu afastar um juiz porque ele deu uma declaração pública, rápida, em que ele nem apreciou os fatos, foi uma declaração lacônica, mas que o tribunal entendeu que o juiz, com isso, deixou de parecer imparcial, determinando seu afastamento do caso.
E a terceira vertente?
Na vertente psiquiátrico-psicanalítica, eu chamo a atenção para um estudo de 1950, do filósofo Theodor Adorno que, com outros pesquisadores, tenta encontrar que tipo de personalidade política há na sociedade americana, e acaba detectando o que chama de personalidade antidemocrática ou fascista. Isto em 1950, logo após a Segunda Guerra.
Esse filósofo alinha catorze pontos em que caberia dizer que a pessoa, operadora do direito, tem uma postura antidemocrática e/ou fascista.
Escrevi há pouco um artigo, onde coloco essa referência, e as pessoas poderão identificar ali o que está acontecendo hoje no Brasil.
Resumindo, observa-se um quadro de perturbação emocional, levando a uma perturbação mental, quando o operador do direito, diante de uma hipótese, transforma essa hipótese em uma verdade, certeza, que se converte em uma verdade delirante, para em seguida, verem qualquer coisa, qualquer fato serve, para confirmar a certeza delirante da qual partiu.
Como avalia a Lava Jato?
A meu ver tudo isso parece uma iniciativa autoritária, dentro de uma configuração antidemocrática e fascista. Eu diria que a Lava Jato destruiu o parque da engenharia civil brasileira, a indústria naval, um estrago muito grande.
É uma força-tarefa que nasce maculada pela parcialidade. Justifica-se uma força-tarefa composta por agentes que se controlam mutuamente, polícia e Ministério Público, junto com o juiz, que precisaria manter equidistância das partes? O MP como acusador é parte; como fiscal da lei, teria de fiscalizar juiz e polícia.
Então, é uma situação em que a função constitucional central de uma instituição do porte do Ministério Público se perde totalmente. O Ministério Público já não é mais fiscal da lei, já não exerce controle da atividade policial, mas sim mistura-se com a polícia, com o juiz, e o juiz não mantém equidistância das partes, verdades delirantes são determinadas antes da análise técnica dos fatos.
E esses agentes se juntam para quê? Para achar nada? Não! Não se tem notícia de força-tarefa que acabou em nada. Força-tarefa é para acabar em alguma coisa. Por alguma coisa entenda-se: condenação. Já ouviu falar em força-tarefa que deu em arquivamento, absolvição? Não. Isso seria um atestado de incompetência, nessa visão.
https://www.youtube.com/watch?v=DmVFuQs0kWI
Como esse pensamento autoritário se expressa na operação?
O pensamento autoritário está por trás da manutenção de prisões por prazos dilatados, para arrancar do preso delações que confirmem a verdade delirante e, assim, como a Lava Jato tem se comportado.
Recentemente submetida a júri popular, a operação foi condenada e a pena convertida em medida de segurança, que é determinada quando o réu, no caso, a ré (a operação Lava Jato) apresenta problemas mentais e precisa de tratamento.
Ela foi condenada a submeter-se a tratamento ambulatorial para a resolução desse quadro mental paranoico, num campo em que a hipótese rapidamente se converte em verdade, em certeza delirante, em que a busca dos fatos é uma operação que se faz para confirmar tal verdade. Dentro do pensamento autoritário, então, tem uma ideia de justiçamento, de salvação da pátria.
Eu assisti um vídeo em que o procurador da República Dallagnol estava sendo entrevistado pelo Jô Soares, e ele pediu ao Jô que perguntasse à plateia quem achava que a operação Lava Jato salvaria o País. O auditório estava bem cheio e duas ou três pessoas levantaram a mão. Mas essa realidade não acaba com a verdade delirante dele, a verdade delirante continua, apesar dessa realidade indicar outra coisa, sem qualquer ligação com os fatos.
Teria um exemplo concreto do que você chama de verdade delirante?
O processo normal de elaboração de um juízo jurídico é escolher os fatos típicos, as provas e, no final, chegar a uma verdade: a uma verdade formal no processo civil e à verdade real no processo penal. Se as provas não são suficientes, presunção da inocência e decisão a favor do réu, in dubio pro reo. Mas quando você começa com uma certeza, com uma verdade delirante, qualquer fato serve e você não para de escrever. Se precisar, vai escrever 500 páginas para provar sua verdade inicial.
A verdade delirante emblemática é o Deltan Dallagnol dizendo: “não temos provas, mas temos convicção”. Isso é uma verdade delirante. Ele não tem prova, mas ele “sabe” quem é culpado e vai fazer qualquer coisa, arrumar qualquer argumento para provar isso. Entende? Ao dizer isso, ele não parte dos fatos, parte da ideia da cabeça dele. Também como quando diz: “a Lava Jato vai salvar o País” ou “a Lava Jato vai acabar com a corrupção no País”, tudo isso é verdade delirante.
E o papel da grande mídia nisso?
Como uma verdade delirante se transforma em verdade pacífica? Você repete essa verdade muitas vezes, em muitos espaços, com replique. Repete e fica replicando. Quantas horas de grande mídia só acusando Lula? Muitas.
Um juiz usar uma matéria de jornal para fundamentar convicção dele é verdade delirante. Isso não é lei e não foi constituída prova dentro dos autos, com o rigor do direito. Então eu não posso considerar. “Ah, porque o jornal anunciou que a pessoa foi três vezes lá. Então, vamos denunciá-lo por isso”, ou “a testemunha tal disse num jornal que a ré esteve lá. Então, ela é a dona”. Olha o pulo que se dá. Isso é verdade delirante.
De uma maneira geral, com tanta desigualdade social no País, é muito difícil que um réu não se sinta oprimido e que o opressor não se justifique, não se legitime, na posição de opressor. “Ele ganha mais porque ele pode, merece. Não tem nada de estranho nisso”, é a justificativa. Outra verdade delirante é entender que você é melhor que o outro e exigir tratamento especial.
Como seria feita a recepção da chamada exceção de parcialidade na legislação brasileira?
Por meio de mudança legislativa. Dentro do comportamento dos operadores do direito é muito importante que a lei brasileira seja alterada, o Código de Processo Penal e Processo Civil, para receber a teoria da aparência, em que uma mera fotografia de um operador do direito em risinhos e intimidades que só se tem com amigos íntimos, com um adversário político de um réu seu, bastaria para afastar este juiz do caso. Só uma vez, não precisa ser muitas. Tem acontecido muitas, é verdade, mas uma vez serviria.
Além da implementação da exceção de parcialidade, proposta pelo Coletivo Transforma MP, eu tenho ainda a ousadia de propor que essa exceção não fosse julgada pelos pares do suposto operador do direito, mas que fosse julgado dentro do Conselho Superior da Instituição e que nesse Conselho houvesse, pelo menos, 80% de representação popular, para que ameaças de corporativismos fossem afastadas.
O projeto do senador Roberto Requião de abuso de autoridade, aprovado pelo Senado, está nesta linha?
Sim. Exato. Para manter um certo controle da ação do juiz, delegado, promotor, dos operadores do direito. Atos praticados com arroubo podem matar uma pessoa. Por exemplo, o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, não aguentou.
Onde acha que a Lava Jato quer chegar?
Na eliminação do maior adversário político do PSDB e da oligarquia dominante. Poderíamos dizer que a operação Lava Jato representa a forra, a vingança, da classe dominante que, em cinco séculos de história juntou milhões de desassistidos, deixou morrer milhões de crianças, instalou em vários momentos ditaduras e não se conformou de assistir condenados ao esquecimento histórico chegarem a posições de certo conforto socioeconômico.
Se formos analisar a, digamos, árvore genealógica dos membros da Lava Jato, e existem estudos sobre isso, veremos que eles são legítimos representantes da classe oligárquica dominante que precisa manter um certo status quo e que quer manter o poder. Querem dinheiro e poder.
A corrupção é função da desigualdade social. Há diagnósticos de importantes sociólogos dizendo que se atacássemos as desigualdades, o nível de corrupção desceria muitíssimo. Muitíssimo. Então, quando se proclama que a Lava Jato vai acabar com a corrupção no País é mais provável que acabem com a Lava Jato, antes que a corrupção acabe.
Uma outra verdade delirante. E acabar com a desigualdade, diminuir a desigualdade, cumprir o pacto constituinte, fica para quem? Quem vai fazer isso? Quem quer ajudar a cumprir as normas constitucionais? Normas que pedem, que exigem, que impõem ao estado a gerência da coisa pública para que a sociedade brasileira se torne, de fato, solidária, para que seja erradicada a miséria do País, para que todos tenham educação, saúde, para que todos tenham comida, oportunidade de felicidade, de desfrutar de todos os bens imateriais e materiais da vida.
A classe oligárquica, muito bem representada pelos integrantes da Lava Jato, defende a meritocracia. Há um vídeo ótimo na internet em que se propõe uma corrida para ganhar uma nota de cem dólares e a pessoa que lidera a brincadeira diz: “dois passos à frente para quem cresceu com pai e mãe em casa, dois passos à frente para quem sempre teve comida, dois passos à frente para quem pôde pagar por seus estudos”, e os negros vão ficando para trás e podemos perceber quem ganharia a corrida. Está marcado, é um jogo de cartas marcadas. Quem irá implementar o pacto constitucional de igualdade real?
Como se expressou a plateia do Jô Soares, a Lava Jato não vai salvar o Brasil. Está enfiando o País num buraco de autoritarismo, em que a ordem jurídica, a ordem democrática constitucional, a ordem cara à humanidade, de respeito a direitos humanos como acesso à Justiça e direito de ser julgado por juízo imparcial e independente, tudo isso está, simplesmente, sendo esquecido em várias instâncias do poder judiciário.
É uma contaminação de tal ordem que nos permitiria dizer que vivemos, atualmente, um estado de exceção, onde quando interessa se aplica a lei, quando não, se esquece a lei e se faz jurisprudência criativa para justificar a proteção, a blindagem, dos amigos ou a criminalização dos inimigos. O sistema parece entregue a essas duas tarefas: blindar amigos e criminalizar inimigos.
Acha que a Lava Jato é instrumento do PSDB ou o PSDB é instrumento da Lava Jato?
A Lava Jato é instrumento de uma ideia de nação que visa manter a meritocracia como argumento básico para a continuidade de privilégios históricos. Por que um juiz ganha muito mais que um salário mínimo? “Porque ele estuda mais. Porque merece”, essa é a justificativa nesse discurso. Um projeto completamente diferente do projeto de nação que começou a ser implementado a partir do Lula.
A Lava Jato serve a uma minoria privilegiada. Se você faz a árvore genealógica das pessoas que integram a operação, vê que elas participam dessa minoria, dessa oligarquia jurídica, política, social, econômica.
E tem alternativa a isso?
Acho que tem. Eu elaboro o que chamo de “devolução de justiça própria”. Por exemplo, a Lava jato poderia ter negociado, com todos os réus e todas as pessoas envolvidas, a devolução de recursos sem atingir programas e empresas. De uma forma menos comprometedora para a economia nacional, que está em frangalhos.
A “devolução de justiça própria” se dá num quadro que denomino de “Justiça feminina do cuidado”. Isto é, se for só aplicar a lei, primeiro, não tem juiz neutro, imparcial, a Justiça tira as vendas e escolhe os amigos para blindar e os inimigos para perseguir. Então, a melhor forma é devolver “justiça própria”. Deixar que as partes encontrem uma melhor forma de resolver a questão. Não estou falando de Lava Jato, mas sim de um sentido geral de justiça. E a aplicação do direito precisa reservar valores e bens mais altos às partes, como por exemplo, manter a capacidade de investimento das empresas, manter o parque industrial e outros projetos. Tudo isso foi parado por causa da Lava Jato.
Você fala que o direito é regido por algoritmos, o que quer dizer?
O algoritmo é um sistema formal idealizado do direito. Tem a lei e o juiz aplica a lei com as vendas. No computador, se eu coloco a senha certa, não importa se eu ou você está digitando, entro no seu sistema. Vou fazer o que o computador está programado para fazer.
E isso é uma mentira, não existe, uma vez que estamos sempre lidando com pessoas. Então, se temos dois processos iguais, se um for para o juiz A e outro para o juiz B, provavelmente, as decisões serão diferentes, e o sistema é o mesmo. O sistema se pretende científico, algorítmico, e não é.