HÁ UMA COISA irritante na Folha de S. Paulo: a bajulação póstuma de Octavio Frias de Oliveira. Frias, empresário, é tratado servilmente por jornalistas como Clóvis Rossi, Juca Kfouri e outros como se fosse um jornalista, e incomparável.
Não é verdade. Frias foi um empresário astuto, competente. Quando comprou a Folha de Nabantino Ramos, no início da década de 60, seguiu o conselho de um amigo que lhe dizia que dinheiro ele já tinha com sua granja e a Folha lhe traria status. Trouxe. Num livro-homenagem a ele, o status adquirido com a Folha é visível na coleção de fotos de Frias com personalidades. Um granjeiro não formaria aquela coleção.
Notícia é notícia, ovo é ovo.
A mais recente adulação póstuma está num texto de José Geraldo Couto que li neste final de semana. Era sobre o estádio do Corinthians. Couto citava uma “frase sábia” de Frias, “dono e editor” da Folha. “Não existe almoço grátis”. É uma sentença clássica, é verdade. Mas não de Frias e sim de Milton Friedman, o economista liberal de Chicago que esteve na moda nas duas últimas décadas do século passado.
É um dito que cito com frequência. Significa que sempre alguém — em geral o contribuinte — está pagando por alguma mamata.
Os jornalistas brasileiros sem se dar conta se desvalorizam na sofreguidão com que se referem a empresários como jornalistas. Jornalista é quem faz coisas como legendas, títulos etc. Quem dá nexo a um texto ruim a tempo de o jornal chegar à banca. Quem orienta um jovem repórter que não sabe direito o valor da notícia que trouxe da rua.
No caso específico de Frias, os jornalistas da Folha gostam de dizer que ele modernizou os jornais brasileiros. Não é verdade. A modernização dos jornais brasileiros é obra de jornalistas e do próprio tempo. A Folha nos últimoss 50 anos foi renovada por jornalistas como papai, Claudio Abramo, Ruy Lopes, Lourenço Diaféria, Paulo Francis, Alberto Dines, Mauro Santayanna, Tarso de Castro, Hideo Onaga, Mario Mazzei Guimarães, José Reis, Joelmir Betting e o próprio Otávio Frias, filho de Frias, ele sim um jornalista.
Dizer que proprietários são responsáveis pela modernização da imprensa é como dizer que os donos das editoras russas modernizaram a literatura russa no século 19 e não Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev e Pushkin.
A César o que é de César.
Papai falava muito comigo sobre jornalismo e jornalistas. Admirava acima de todos os jornalistas com que trabalhara dois: Mario Mazzei Guimarães e José Reis, ambos chefes de redação brilhantes da Folha nos anos 50 e 60. Papai trabalhou sob dois donos, primeiro Nabantino e depois Frias. Tinha afinidade intelectual com Nabantino, um empresário visionário que viajara para fora do Brasil em busca de conhecimento das melhores práticas jornalísticas que existiam no mundo.
De Nabantino, provavelmente papai jamais teria recebido ordens como a que um dia, no regime militar, lhe deu Frias quando papai escrevia editoriais. Havia uma greve de fome de presos políticos, e Frias mandou papai escrever um editorial que disse que não existiam presos políticos. Todos eram presos comuns. Papai recusou e, como sempre, pagou o preço por suas convicções. É uma história que ele me contou quando eu estava começando no jornalismo, não com intuito condenatório, porque papai era um homem puro e generoso. Ele apenas queria instruir o jovem jornalista que tinha em casa.
Frias, papai ouvia com o respeito que devotava a todo mundo, dos colegas aos donos. De Frias, quinzenalmente, vinha o holerite que lhe permitia pagar as despesas do lar. Parte delas, porque no tempo de papai os jornalistas tinham que complementar sua renda com um segundo emprego. Papai era professor. Mas de Frias não vinham lições de jornalismo que alguns jornalistas da Folha citam postumamente com devoção fanática.