O ex-procurador da república Marcelo Miller não falou a verdade na CPI da JBS ao responder a uma pergunta sobre um procurador dos Estados Unidos que, a exemplo dele, Miller, deixou o serviço público para trabalhar em escritório de advocacia que defendeu o grupo empresarial de Joesley e Wesley Batista. O deputado Paulo Pimenta interrogava o ex-procurador:
— Na manifestação do senhor Marcelo Miller, quando estava sendo indagado por mim, ele nos revelou aqui que, ainda quando estava como procurador, ligou para os Estados Unidos, conversou com um procurador, marcando sua ida para os Estados Unidos, que já conhecia este procurador de outras tratativas anteriores, os senhores Daniel Kuhn e Jason Linder …
Pimenta interrompe o raciocínio e pergunta a Miller:
São estes os nomes?
Miller – Este telefonema se deu com o Daniel Kuhn. O Jason Linder era um procurador conhecido meu, que pediu exoneração mais ou menos na mesma época, nós trocamos e-mails e telefonemas.
Pimenta reforça o que Miller tinha dito pouco antes, tinha dito como a exemplificar que a saída do serviço público para a iniciativa privada é comum nos Estados Unidos. Pimenta repetiu:
Jason Linder pediu demissão mais ou menos na mesma época que o senhor do Ministério Público dos Estados Unidos.
Isso — responde Miller.
O senhor assumiu, o seu grande objetivo era o acordo de leniência da JBS, para a J&F nos Estados Unidos.
Sim — confirma o ex-procurador.
O senhor sabe me dizer se o senhor Jason Linder teve alguma relação com o grupo J&F, logo após a sua saída do Ministério Público nos Estados Unidos?
Miller, ainda seguro, afirma:
Que eu saiba, zero. Ele foi para um escritório chamado Irell & Manella, em Los Angeles, ele é californiano. Enfim, no fundo estava voltando para a terra dele. Ele ficou muito longe da ação e até onde eu sei esse escritório não trabalhava para a J&F.
Paulo Pimenta lê, então, uma reportagem publicada pela BBC e o castelo de areia do procurador, até então muito seguro, começa a desmoronar.
A reportagem da BBC revela que, a exemplo de Miller, o procurador Jason Linder deixou o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e foi para um escritório particular, em nome do qual deu entrevista para defender a J&F.
Publicada em maio de 2017, a reportagem da BBC, estranhamente, não apresenta Jason Linder como um profissional que teve relação de trabalho com a J&F — também do outro lado do balcão, a exemplo de Miller —, como procurador do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
O advogado é apresentado como “especialista em crimes do colarinho branco americano, que atuou, de 2007 até o início deste mês, como procurador federal especializado em fraudes internacionais no Departamento de Justiça americano”.
Também é qualificado como diretor de investigações globais anticorrupção do escritório Irell & Manella. Na reportagem, Jason Linder diz que os Estados Unidos não poderiam investigar os irmãos Joesley e Wesley Batista.
Atual diretor de investigações globais anticorrupção do escritório Irell & Manella, Linder diz que o governo dos EUA só poderia investigar individualmente os dois brasileiros se eles tivessem cometido crimes em solo americano, ou se tivessem cargos na subsidiária da empresa nos EUA.
Nem Joesley, nem Wesley, entretanto, aparecem como diretores da chamada “JBS USA”, braço americano da empresa. O único Batista na diretoria da JBS USA é Wesley Batista Filho – filho de Wesley, que começou como trainee na empresa em 2010 e hoje é presidente do setor de carne de boi nos EUA.
Assim, como não há provas ou delações de crimes corridos fora do Brasil, e nenhum dos dois Batistas em cargos nos EUA, a Justiça americana não tem poder de investigá-los.
O texto da BBC tem jeito de matéria encomendada, já que livra a cara dos irmãos Batista, com reflexo do mercado de ações, e omite que Jason Linder atuou, como procurador, no caso da J&F.
Ambos, portanto, de investigadores passaram a ter interesse pela defesa da empresa dos irmãos Joesley.
Esse trecho do depoimento de Miller, o mais importante de toda fala do ex-procurador, revela proximidade entre autoridades do Ministério Público Federal do Brasil e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Uma relação estranha, como lembrou o deputado Wadih Damous, ao tomar conhecimento de que Miller integrou uma comitiva de procuradores que, liderados por Rodrigo Janot, esteve no Departamento de Justiça dos Estados, ainda 2015, quando Dilma Rousseff era presidente da República.
O deputado Damous, que é advogado e já foi presidente da OAB do Rio de Janeiro, perguntou se o Ministério da Justiça sabia dessa reunião nos Estados Unidos, para tratar de corrupção na Petrobras, empresa que, à época, estava sendo processada na Justiça por investidores que se consideravam lesados pelos casos de corrupção denunciados pelo Ministério Publico. Os acordos de cooperação estabelecem que ajuda mútua só pode ocorrer através do governo federal, seja pelo Ministério da Justiça ou das Relações Exteriores — ou de ambos. Miller não soube dizer se o governo Dilma sabia dessa reunião.
“Para mim, há um quinta-colunismo nessa relação, o senhor não acha?”, perguntou Damous, com o uso de uma expressão que significa deslealdade, traição — quinta coluna era como Cesar chamava, no império romano, os traidores do exército. Miller não concordou com a colocação de Damous.
A CPMI da J&F avançou, com o depoimento do ex-procurador, ao se aproximar de uma relação nada transparente das autoridades da Justiça brasileira e do Ministério Público Federal com o governo dos Estados Unidos. O depoimento do advogado Rodrigo Tacla Durán, previsto para esta quinta-feira, dia 30, deve jogar mais luz no ambiente de trevas em que se transformou o Lava Jato.