POR RENATO BAZAN
Há um fenômeno fantástico ocorrendo no jornalismo brasileiro na última semana: virou mania falar das tais Bitcoins. Nesse período, não houve um dia sequer em que nenhum dos canais de TV abordasse o tema.
O motivo desse despertar não é a sede pelo conhecimento nem o bom jornalismo econômico – muito pelo contrário, aliás. O motivo desse despertar é a valorização explosiva dessa moeda virtual, que apenas na última semana foi de 22,8%. O cheiro do dinheiro fácil sempre atrai igualmente especuladores e jornalistas no mercado financeiro.
A superficialidade com a qual esse tema está sendo apresentado ao brasileiro é preocupante. Se até ontem a Bitcoin era apenas um fetiche hacker a ser operado por monitores verde-fósforo, hoje ela se tornou o centro de uma corrida do ouro maluca, uma “oportunidade de investimento” igual a qualquer outra operação financeira.
Enquanto o JN exalta a valorização da Bitcoin em 1.794% em menos de um ano e o SBT Brasil mostra os métodos para quem quer se juntar à onda, a realidade cada vez mais tóxica desse tipo de transação sequer aparece nas reportagens.
O aspecto pantanoso foi denunciado mais recentemente pelo economista Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, à rede americana Bloomberg. Em entrevista, afirmou: “A Bitcoin não serve a nenhuma função socialmente útil, e sem nenhum tipo de regulação por parte do governo, deveria ser proibida. Seu único motivo de sucesso vem de seu potencial para contravenções, falta de fiscalização”.
Stiglitz faz parte de um grupo cada vez maior de economistas preocupados com o futuro das “criptomoedas” – uma ideia genial, em teoria, mas que já indica ser um desastre social na prática. Entender a ideia por trás da febre, mais do que uma boa prática de finanças pessoais, é um dever para quem deseja participar do debate.
Mas o que são, afinal, “criptomoedas”?
A Bitcoin é um “criptomoeda” inventada por um internauta (ou grupo) cujo pseudônimo era Satoshi Nakamoto. A figura misteriosa lançou o conceito em 2008, ajudou a implementá-lo, e desapareceu da Internet em 2011.
Sua proposta originou a primeira entre 1.358 unidades monetárias digitais, todas unidas pelo mesmo objetivo: o de usar a Internet para desviar de qualquer tipo de controle monetário governamental.
Há duas características fundamentais que garantem esse objetivo: primeiro, a não-existência de manifestação física dessas moedas; segundo, a natureza criptográfica de todas as transações.
O que valida a existência da moeda é uma gigantesca planilha que detém o conjunto de todas as operações já feitas, que é constantemente atualizada por milhares de servidores anônimos ao redor do mundo. Cada transação só se torna válida depois que cada um desses servidores a autoriza em seu próprio bloco de operações, e o “bloco” é ligado à “corrente” com as informações anteriores.
Daí vem o nome “block chain” (“corrente de blocos”) – bastante óbvio, diga-se de passagem.
Esse desenho estrutural distribuído confere ao blockchain um poderosíssimo freio contra fraudes, que vem sendo adotado de forma positiva para outros propósitos, como controlar estoques em grandes supermercados, analisar o tráfego e até pelo próprio sistema bancário norte-americano. Mesmo que um servidor tenha seu banco de dados adulterado, milhares de outros o corrigirão instantaneamente.
A parte da “contravenção” a que Stiglitz se refere se dá pela criptografia pesada sobre as informações do blockchain. Depois que um bloco é fechado e assimilado pela rede, uma complexa operação matemática esconde o registro público para sempre. Beira o impossível descobrir quem comprou o quê, e quando.
Do lado do usuário, a segurança contra fraudes se dá pela atribuição de uma chave digital exclusiva, tão complexa que exigiria de supercomputadores semanas de processamento para desvendar.
Nesse ponto mora, simultaneamente a maior virtude e o maior vício das criptomoedas: se por um lado esse sistema evita que o dinheiro virtual seja duplicado, por outro remove qualquer tipo de controle humano sobre o que está acontecendo na planilha. É um terreno fértil para o banditismo. Não à toa, a crescente adoção dessa ferramenta tem sido associada a práticas de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas na Deep Web, e foi proibida em países como Coreia do Sul e China.
A automação implacável abrange inclusive a própria geração de novas moedas. Para que novas Bitcoins sejam emitidas, é necessário que um servidor feche um bloco e acrescente-o à corrente. Isso acontece a cada 10 minutos, 24 horas por dia, e garante 12,5 novas moedas à máquina que fechar a operação mais rapidamente. Esse ritmo diminui pela metade a cada 4 anos “para que a moeda possa valorizar”.
Aos derrotados, o sistema confere pequenas taxas de verificação por validar os blocos.
O maior esquema de pirâmide (e a maior bolha) do mundo
Tentar explicar essa gincana matemática é suficiente para confundir qualquer cidadão. E, nessa confusão, os próprios jornalistas acabam perdendo o foco. A grande dúvida hoje, segundo os noticiários, é se o Bitcoin é ou não uma bolha financeira.
A resposta para essa pergunta é SIM.
Nas palavras de outro Prêmio Nobel de Economia, Robert Shiller, “a Bitcoin é neste momento o melhor exemplo [do que deveria ser uma bolha]. Uma grande história com um bom grau de mistério e que se encaixa às agonias de seu tempo, que dá às pessoas um senso de empoderamento diante de um novo mundo digital”.
Por trás do entusiasmo juvenil tão bem descrito por Shiller, esconde-se a pergunta que os economistas reais estão se fazendo: POR QUE, afinal, a Bitcoin chegou ao patamar de 17.950 dólares por unidade? Como pode uma moeda se valorizar quase 2.000% em um ano?
Não há como dourar a pílula – uma criptomoeda não representa nada, não tem endereço físico, não tem autoridade nenhuma sustentando seu valor, não é regulamentada. Não há como comprar um pão ou encher o tanque com ela. Não há valor subjacente, não há forma de controle.
A valorização só decorre, portanto, da própria adoção da Bitcoin, que é motivada pela expectativa de que ela se valorize ainda mais. Foi essa observação que levou o presidente do Banco Central do Brasil, Ilan Goldfajn, a chamar a moeda de “esquema de pirâmide” na última quarta-feira (13).
Não é exagero. Criptomoedas não têm qualquer liquidez. A única forma de uma pessoa recuperar o investimento é convencer outra pessoa a comprar sua moeda com dinheiro real. Nesse sentido, Bitcoins não são diferentes de caixas de suplemento alimentar ou de produtos de beleza que acabam encalhados nas garagens dos desavisados. É um produto indesejado, cujo valor está exclusivamente na projeção de valorização no ato de venda.
O caráter de pirâmide fica evidente nas interações dentro das comunidades que hoje debatem as criptomoedas pela Internet. Nos sites especializados, há um fanatismo quanto às benesses da Bitcoin que beira o culto religioso. Qualquer questionamento é recebido com agressividade, pois, como já houve um investimento monetário real por parte dos participantes, críticas são vistas como ameaças à realização do lucro.
A comparação com o mercado de ações, muitas vezes utilizada pelos defensores das moedas virtuais, carregam uma falha fundamental: ao contrário de empresas reais, que participam da atividade econômica e estão integradas na matriz produtiva de um país, uma criptomoeda existe exclusivamente em caráter simbólico.
No longo prazo, o caos absoluto
Falar de crimes virtuais e perdas pessoais dos envolvidos com as criptomoedas, entretanto, é apenas o aspecto imediato dessa discussão. Há uma face mais profunda e muito mais perigosa em toda essa história, que é a perda de controle monetário por parte dos governos.
Vale retomar a proposta inicial da Bitcoin: uma moeda acima de qualquer ente regulatório. Esse ideal ultraliberal nasce de uma concepção infantil de economia, que vê na interferência dos bancos centrais a causa das crises econômicas. Para Satoshi Nakamoto, em seu artigo de origem da moeda, a grande panaceia seria a eliminação completa do ser humano das decisões monetárias, substituído por um protocolo fora de contato com a realidade.
É apenas uma reembalagem do conceito surrado do “livre mercado”, portanto – algo que já deveria estar morto depois de 2008, quando justamente a ausência de regulamentos disparou a maior crise econômica da qual se tem notícia.
Ao vincular a criação de novas moedas com o fechamento dos blocos, a Bitcoin tenta forçar um controle que separa o dinheiro da economia real que ele deveria representar.
O que é o dinheiro, afinal? Apenas uma ferramenta para distribuir a produção de um país, nada mais. O que dá valor às cédulas e números bancários no Brasil, na China ou em qualquer outro lugar não é a quantidade de moedas disponível, e sim a equivalência entre ela e o PIB.
Tentar engessar matematicamente a emissão de novas moedas até o ano 2140, como propõe o protocolo Bitcoin, é de uma arrogância inacreditável. Há uma infinidade de fatores que interferem a todo momento no volume de moedas que um país deveria ter – daí a necessidade de bancos centrais, e comitês monetários, e reuniões intermináveis com linguagem chata.
Pior ainda: conforme a produção de Bitcoins cair, como planejado, haverá um abismo crescente entre a quantidade de moedas disponíveis e o valor que elas deveriam representar. Isso forçará as pessoas a fracionarem cada vez mais as moedas, diminuindo o preço dos produtos por pura escassez monetária e induzindo um quadro deflacionário preocupante.
Em um quadro de deflação, há uma tripla tragédia sobre o trabalhadores: primeiro, as empresas perdem receita; depois, acabam demitindo parte de seus funcionários para não entrarem no vermelho; com isso, diminuem a capacidade geral de consumo, forçando os preços gerais ainda mais para baixo. E começa de novo o ciclo.
Do outro lado, os ricos recebem incentivo real para deixar dinheiro parado. Como a mesma moeda vale cada vez mais com o tempo, faz mais sentido guardá-las debaixo do colchão do que empregá-las em alguma coisa. A concentração primitiva vira regra.
Em meio a tudo isso, os governos estariam acorrentados pelo protocolo monetário do blockchain. Quanto mais pessoas aderissem às criptomoedas, mais refém estaria o conjunto da sociedade diante do protocolo automatizado, que só pode ser alterado se o conjunto dos maiores servidores votar em massa pela alteração do código-fonte – coisa que, em um cenário deflacionário, jamais fariam, pois perderiam muito dinheiro.
Talvez esse seja o aspecto mais perverso dessa situação-limite: os donos dos servidores se tornariam donos da economia. As interferências desse pequeno clube se disfarçariam de tecnicalidades, e o resultado seria uma concentração de renda brutal.
Uma briga que vai longe
Há ainda muitos problemas que poderiam ser colocados contra a Bitcoin, e que ainda carregarão essa discussão por muito tempo. É preciso questionar a hiperconcentração de servidores nas mãos de pouquíssimos grupos chineses, assim como as recorrentes brigas que acabam na criação de moedas paralelas e o caráter autoritário de distribuir as novas moedas para quem já tem máquinas poderosas.
É fundamental corrigir o baixíssimo limite de transações por segundo da rede, e regular os preços cada vez mais altos cobrados para operar cada transação. Isso sem falar no consumo de eletricidade estratosférico associado à “mineração” de novas moedas, que já supera o de 159 países e não para de crescer.
São muitos problemas. E não há sinal de resolução.
O que impressiona, diante desse quadro, é assistir ao Jornal Nacional repetir, cada dia mais seguro, que a Bitcoin “é uma forma de investimento que está ganhando o mundo”, mesmo com a profusão de armadilhas espalhadas pelo caminho.
Não podemos continuar fingindo que as criptomoedas não terão consequências reais. A discussão não pode estar limitada a uma brincadeira de cassino.