Na entrevista que deu aos jornalistas Alberto Bombig e Pedro Venceslau, de O Estado de S. Paulo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso compara o fenômeno Lula ao de Alberto Fujimori, no Peru:
O fujimorismo é a força predominante até hoje, e o Fujimori está na cadeia (estava até o dia 24, quando recebeu indulto humanitário do atual presidente Pedro Pablo Kuczynski). O próprio Perón teve um momento assim. É curioso ver que em países como os nossos, com um nível educacional relativamente pouco desenvolvido, as pessoas têm muitas carências. Aqueles que dão às pessoas a sensação de que atenderam às suas carências ganham uma certa permissão para se desviar da ética. É pavoroso, mas é assim. É populismo.
A comparação é absolutamente indevida, porque, na trajetória de Alberto Fujimori, há muito mais semelhança com o governo de Fernando Henrique Cardoso do que com a de Lula — de orientação política muito diferente da de Fujimori.
Foi Fujimori — e não Chaves — quem abriu a porta na América do Sul para a reeleição. Foi em 1992, quando ele fechou o Congresso e mudou a Constituição, para permitir que fosse reeleito, em 1995.
Fernando Henrique Cardoso não precisou fechar o Congresso como Fujimori, mas, em 1997, aprovou a reeleição graças à compra de parlamentares, como confessaram alguns deputados e apontou o então senador Pedro Simon — “foram pelo menos 150”.
Depois do trio, a reeleição na América Latina, até então excepcional — apenas a República Dominicana admitia o expediente — se espalhou pelo continente.
No Brasil, o PT foi contra e, na última vez em que a matéria foi examinada pelo Congresso Nacional, já no governo Dilma Rousseff, se manteve contra.
Em comum com Fujimori, além do empenho para se manter no poder — ou talvez por isso mesmo —, Fernando Henrique Cardoso tocava um projeto neoliberal de governo — ele odeia essa palavra e tenta de toda maneira apagar o carimbo que ficou pregado na testa (“neoliberal”).
Ambos promoveram a desregulamentação selvagem da economia, sem atentar para os danos sociais que causaram. Também existe semelhança entre Fujimori e Fernando Henrique Cardoso na forma heterodoxa como ambos lideram com o Legislativo.
No Brasil, além do episódio da compra dos votos para a emenda da reeleição, Fernando Henrique passou por cima do Congresso ao institucionalizar a prática de reeditar medidas provisórias.
O Congresso não votava ou rejeitava medidas enviadas pelo Planalto, e o que fazia Fernando Henrique? Mandava outra MP, com conteúdo quase idêntico, mas com outra numeração.
O abuso foi tão grande que, mais tarde, já no final do segundo mandato de Fernando Henrique, o Congresso mudou as regras de emissão de MPs e as práticas não foram mais adotadas.
Incluídas as MPs reeditadas, Fernando Henrique deixou a quantia de 5.395 MPs. Foram 56 por mês, ou duas por dia.
Não se pode falar em exercício pleno da democracia quando um presidente governa com leis vigentes sem a aprovação do Congresso.
É o que aconteceu no Brasil e também no Peru sob Fernando Henrique e Fujimori.
Sinal do prestígio de que Fujimori desfrutava com Fernando Henrique foi a homenagem que este lhe prestou no dia 27 de julho de 1999, quando viajou para Lima para entregar ao então presidente peruano a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais importante comenda brasileira.
Até então, a honraria tinha sido entregue a poucas personalidades — Che Guevara, líder da Revolução Cubana, por Jânio Quadros, em 1962, e Nélson Mandela, líder do movimento contra o apartheid.
Coube ao senador Roberto Requião cassar a homenagem prestada por FHC a Fujimori, através de um projeto de lei que demorou 11 anos para ser aprovado no Congresso.
Em suas memórias, Fernando Henrique conta que, durante seu governo, recebeu de presente de Roberto Irineu Marinho, do Grupo Globo, um filme que mostrava “por que Fujimori endureceu no Peru” (sic, página 201, do livro Diários da Presidência – 1997-1998).
O Fujimori que hoje Fernando Henrique critica e tenta comparar com Lula foi, na verdade, uma referência a ele e a seus amigos.
Fernando Henrique diz coisas como esta e embaralha a história porque sabe que parte do seu público acredita em qualquer coisa.
Como disse o produtor de fake news Christian, da Macedônia, ao tratar do eleitor de Donald Trump em documentário exibido pelo Globonews, o eleitor de direita é mais estúpido (veja nota).
Na mesma entrevista ao Estadão, questionado sobre Aécio Neves e os esquemas de corrupção no governo do PSDB em São Paulo, Fernando Henrique também abusa da capacidade de análises inconsistentes — mas que seu público acredita.
Sobre Aécio:
— Aécio (Neves, senador por Minas Gerais e ex-presidente do PSDB) não é um irresponsável. Fez coisas positivas para o PSDB.
Sobre o governo de São Paulo, os jornalistas perguntaram:
Além do caso da JBS, que envolve o Aécio, o partido ainda enfrenta, mais recentemente, os impactos do acordo de leniência da Camargo Corrêa e da Odebrecht, na qual ambas as empresas reconhecem cartel em obras nos governos tucanos em São Paulo. Qual o tamanho da avaria no caso do PSDB?
E Fernando Henrique respondeu:
Esse é o ponto. A Lava Jato demonstrou ao País, e isso deixou todo mundo horrorizado, que aqui se montou um sistema de poder político baseado na propina. Não é só uma questão de fulano ou beltrano roubou. É muito mais grave do que isso. As instituições ficaram comprometidas. O PSDB não participou desse sistema nem em São Paulo. No caso de São Paulo, se houve algum malfeito no Rodoanel (uma das obras em investigação – teria havido cartel para linhas de metrô também), não foi o PSDB que fez ou o governador que organizou. Aqui não se organizou esquema. Não tem um tesoureiro do PSDB que pegou dinheiro. Houve um cartel, mas contra o governo.
Ou seja, na versão de Fernando Henrique, José Serra e Geraldo Alckmin foram vítimas. O pior é que o eleitor deles acredita. Ou finge acreditar.