Uma das maiores infâmias da ditadura civil-militar foi uso do aparelho do Estado para perseguir inimigos pessoais.
Havia pessoas que, não gostando de alguém ou tendo interesse na sua destruição, procurava os órgãos de repressão para fazer denúncias, verdadeiras ou não.
Pelo menos em um caso, a Lava Jato também serviu a este propósito. Trata-se de uma investigação sobre a Fecomércio, no Rio de Janeiro.
A velha mídia deu destaque a uma operação que fez buscas buscas e apreensões e efetuou uma prisão, a do ex-presidente da entidade, Orlando Diniz.
Mas nenhuma linha foi escrita sobre os antecedentes desta investigação, que envolve uma antiga disputa pelo orçamento bilionário que envolve Sesc e Senac, parte do sistema S que é mantido por contribuições compulsórias dos empregadores que incidem sobre a folha de salários.
De um Lado, está Orlando Diniz, que foi presidente da Fecomércio. De outro, Antônio José Domingues de Oliveira Santos, um dos mais longevos líderes sindicais da história do Brasil.
Oliveira Santos está no comando da Confederação Nacional do Comércio (CNC) desde 1980 — há 38 anos, portanto —, eleito na época com o apoio do general Golbery do Couto e Silva.
Em 2016, a Revista IstoÉ dinheiro publicou um perfil dele, em que o chama de “coronel do comércio” e destaca a longevidade de seu comando.
A revista o compara a Napoleão Bonaparte, que ficou 15 anos à frente do império francês, e Saddam Hussein, que teve 23 anos de poder absoluta no Iraque.
“Embora mandatos longevos sejam relativamente comuns nas entidades sindicais, empresariais e de trabalhadores no País, chama a atenção, por ser um recorde digno do Guiness Book, a duração do mandato do capixaba Antonio Oliveira Santos, 85 anos (hoje 87), no comando da Confederação Nacional do Comércio”, informa.
Desde que as mãos poderosas — e hábeis — de Golbery pesaram em favor de sua eleição no final da década 70 século passado, ninguém conseguiu tirá-lo da cadeia, exceto Orlando Diniz, que obteve na Justiça, durante um curto período, o afastamento dele do comando da CNC, em razão da rejeição de uma de suas contas pelo TCU.
A disputa foi uma das muitas que os dois travam desde que Orlando o enfrentou em uma eleição. Como costuma fazer com seus opositores, Oliveira reagiu com uma intervenção no Sesc e Senac, órgãos administrados pelas federações estaduais.
Só que, ao contrário de outros oponentes, como o do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Piauí, que também sofreram intervenção, Orlando foi para o enfrentamento, numa luta que consumiu recursos milionários dos dois lados — no final, pagos com dinheiro do imposto sindical e das contribuições para o Sistema S.
Em abril do ano passado, sem conseguir remover o oponente, Oliveira compareceu à Lava Jato, com uma representação em que aponta os gastos elevados com honorários advocatícios para solicitar investigação na entidade.
Além da rejeição das contas pelo TCU, Oliveira Santos tem seus próprios pecados.
“As acusações contra o presidente da CNC são tão extensas quanto seu período à frente da entidade, e se renovam com uma impressionante rapidez. A mais recente delas diz respeito à locação de um apartamento de luxo na Barra da Tijuca para Cláudia Fadel, uma diretora do Sesc, pessoa próxima a Oliveira Santos. A entidade paga, desde abril, aluguel de R$ 7,5 mil pelo imóvel, além de ter desembolsado um seguro-caução de R$ 107,5 mil”, destacou a reportagem da IstoÉ Dinheiro, que é de 2016.
Mas, diante dos procuradores, Oliveira Santos se apresentou como se fosse um catão e se aproveitou de nomes investigados da Lava Jato para chamar a atenção dos procuradores.
Na banca que defende a Fecomércio do Rio, figurava Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sérgio Cabral, e Oliveira Santos a cita num contexto de suspeita.
“O ex-governador teria se valido do escritório de advocacia do qual sua esposa é sócia, para o branqueamento de capitais oriundos de aventados esquemas de corrupção engendrados em seu governo à frente do Estado do Rio de Janeiro”, diz Oliveira Santos, em sua representação.
Se se considerar válido o argumento de que todo cliente de Adriana Ancelmo é suspeito, a lista é grande e envolve nomes que a Lava Jato corre só de ouvir sua menção.
Adriana teve um dos maiores escritórios do Rio de Janeiro e, entre seus clientes, está Paula Marinho, filha de João Roberto Marinho, dono do Grupo Globo.
Adriana defendeu Paula Marinho em pelo dois processos — por desentendimento de vizinhança num caso de um imóvel de sua empresa em Copacabana e outro, num caso contra Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso.
Adriana também advogou para Luciano Huck.
A Fecomércio, na gestão de Orlando Diniz, também contratou os escritórios de Cristiano Zanin Martins, o advogado de Lula, e Rafael Valim, dono de uma editora que tem se destaca na publicação de obras que denunciam o golpe, além de Sérgio Bermudes e Ana Basílio, que é mulher do presidente do Tribunal Regional Federal da 1a. Região.
No relatório que apresentou para justificar o pedido de prisão de Diniz e de mandados de busca e apreensão, o Ministério Publico Federal descreve condutas suspeitas do presidente afastado da Fecomércio, mas, em relação aos escritórios de advocacia, não existe nada que comprometa a atuação dos advogados.
Um desses advogados, Rafael Valim, teve o escritório alvo de mandado de busca e apreensão e apenas um fato é mencionado para justificar a medida. Numa conversa telefônica interceptada, Valim diz a seu cliente que “tem boi na linha”, numa advertência de que a ligação está sendo grampeada.
Por conta disso, Valim foi apontado pelos procuradores como “operador jurídico” do esquema. O que é isso?
O Ministério Público Federal dá a entender que Valim daria orientações para encobrir condutas criminosas.
Ora, um advogado advertir o cliente de que ele poderia estar sendo grampeado não pode ser considerado crime nem no Brasil de hoje ou na União Soviética de Stálin nos anos 30 e 40. É obrigação. Conversas entre advogado e seu cliente devem ser protegidas, em qualquer circunstância.
Se é assim, por que o Ministério Público Federal foi para cima de Valim?
Advogados que estiveram no ato de desagravo a Valim, segunda-feira da semana passada, num restaurante em São Paulo, suspeitam que os procuradores, depois de atingirem alvos políticos, agora miram nos seus defensores.
Parecia delírio ou vitimismo de profissionais de Direito, mas a suspeita ganha corpo depois que começaram a aparecer manifestações que fazem eco à operação da Polícia Federal.
O professor Carlos Alberto Di Franco, colaborador do jornal O Estado de S. Paulo, assina artigo publicado ontem em que lança a suspeita contra a atuação do escritório do advogado de Lula.
“Segundo informações, foram pagos R$ 68,3 milhões em honorários ao escritório. Uma testemunha, o diretor regional do Sesc-RJ Júlio César Gomes, afirmou que Diniz acreditou que o escritório de Roberto Teixeira (sogro de Cristiano) ‘conseguiria a cadeira nacional para ele, em referência à Confederação Nacional do Comércio, principalmente para recuperar a presidência do SESC’”.
Júlio César Gomes foi afastado por Diniz da Fecomércio e, em razão disso, seu depoimento deveria ser visto com reserva. Além disso, quem acompanhou a disputa de Diniz com Oliveira Santos sabe que, até aqui, todas as decisões favoráveis a ele foram obtidas na Justiça.
Di Franco, numa manifestação surpreendente para quem lecionou ética em faculdades de comunicação, faz uma associação entre os elevados honorários da advocacia, o narcotráfico e a corrupção, para concluir:
“Dinheiro de origem duvidosa, roubado da população, pode ir para o bolso de advogados, numa boa? E tudo protegido pela força do anonimato. É um tema polêmica? Sim. Mas, como está, não dá. Está na hora de a OAB abrir uma discussão. Com serenidade, mas com seriedade”, afirma.
Ao que se sabe, o dinheiro das federações não é produto de roubo da população e, além disso, a questão de honorários elevados — e são elevados mesmo — vai além das entidades sindicais.
A Petrobras, segundo noticiou a Folha de S. Paulo, contratou na administração de Pedro Parente escritório de advocacia por R$ 200 milhões. O que o professor de ética Di Franco diria sobre isso?
Na disputa sindical entre os coronéis do comércio no Rio de Janeiro, certamente não há inocentes.
Mas o avanço da Lava Jato sobre um dos lados também é suspeito.
Não é demais lembrar que, pouco antes de entrar com a representação na Procuradoria contra o inimigo Diniz, Oliveira Santos autorizou a entidade a patrocinar no jornal O Globo um evento que teve a presença do juiz Sergio Moro.
Nestes tempos estranhos, iniciativas como estas acabam tendo um peso maior, porque, no aparato de Estado para investigação, parece haver uma divisão entre “nós e eles”.
Entre nós, blindagem. Contra eles, o peso da Justiça.
Estes tempos estranhos também revelam biografias. Hoje, no Superior Tribunal de Justiça, será julgada a ação que questiona o poder da CNC de intervir na administração estadual do Sesc e do Senac.
Antes da operação da Polícia Federal, havia a expectativa de que fosse considerada ilegal a intervenção, já que a legislação que regula o sistema S, de 1967, não prevê esse expediente.
Porém, com o alvo da intervenção na cadeia da Lava Jato — Orlando Diniz —, a tese perde força.
Além do mais, num recurso de última hora, o coronel da Confederação Nacional do Comércio resolveu contratar para sustentação oral um advogado tem currículo sob medida para tirar o inegável caráter político do julgamento.
O advogado será José Eduardo Martins Cardozo, que foi ministro da Justiça de Dilma Rousseff e ainda é filiado ao PT. Sua presença na defesa do Oliveira Santos foi devidamente registrada hoje pela coluna de Sônia Racy, do Estadão.
Cardozo é o personagem perfeito para fazer a disputa por poder político parecer apenas uma contenda jurídica.