Música mencionada pelo jornalista da TV Globo em gravação, ‘Pesadelo’ é uma parceria de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, interpretada pelo grupo MPB4. Chico Pinheiro sugeriu que Ana Cañas gravasse uma versão nova dela, que tem “tudo a ver com esses tempos” de prisão do ex-presidente Lula.
O professor Pasquale fez um comentário sobre a música, que você pode ler abaixo:
Preste atenção nos arranjos instrumental e vocal, perfeitamente integrados à letra, ao sentido da letra
“Quando um muro separa, uma ponte une / (…) Você vem me agarra / Alguém vem me solta / (…) E se a força é tua ela um dia é nossa / (…) Olha o muro, olha a ponte, olha o dia de ontem chegando / Que medo você tem de nós, olha aí / Você corta um verso, eu escrevo outro / Você me prende vivo, eu escapo morto / De repente olha eu de novo / (…) O muro caiu, olha a ponte / Da liberdade guardiã / O braço do Cristo, horizonte / Abraça o dia de amanhã / Olha aí / Olha aí / Olha aí.”
Os mais jovens talvez não conheçam a canção da qual fazem parte os versos supracitados. Trata-se de “Pesadelo” (melodia do saudoso Maurício Tapajós e letra do grande Paulo César Pinheiro), gravada pelo maravilhoso MPB4 no antológico disco “Cicatrizes”. Corria o ano de 1972. Com as garras afiadas, a ditadura militar proibia o que viesse pela frente. Quase fui expulso do colégio porque ousei colocar no mural da escola uma matéria jornalística em que se falava de poluição -especificamente da que havia na cidade paulista de Cubatão. “O senhor é subversivo?”, perguntou-me o diretor do colégio estadual MMDC, na Mooca.
Para tentar driblar a censura militar, Paulo César Pinheiro mandou a letra de “Pesadelo” para a censura no meio de uma infindável coleção de letrinhas bobocas de outros autores da gravadora. Dito e feito. O censor deve ter-se enjoado de ler baboseiras e foi logo carimbando “Aprovado” em tudo. E assim “Pesadelo” ganhou seu “alvará”.
Corajosos, os integrantes do MPB4 incluíram a canção no LP “Cicatrizes”, hoje um clássico da nossa música. Se puder ouvir a gravação original (de preferência a original, de estúdio), preste atenção na grandiosidade dos arranjos instrumental e vocal, perfeitamente integrados à letra, ao sentido da letra. A repetição do verso “Olha aí” e o modo de entoá-lo, por exemplo, traduzem com fidelidade o que era viver sob a eterna sombra de um fantasma, um pesadelo.
Dos versos de “Pesadelo”, o que mais nos marcava era este: “Você me prende vivo, eu escapo morto”. Dotado de fortes matizes do realismo fantástico ou mágico, o verso traduz com a mais extrema fidelidade o que acontecia nos porões do regime então vigente.
Em tempos cada vez mais insossos como os de hoje, em que muitas vezes (quase sempre) por falta de repertório, de lastro, de conhecimento histórico, poucas, pouquíssimas pessoas (mesmo letradas) conseguem compreender um miserável parágrafo de um texto informativo ou uma metáfora, uma ironia, chega a ser um sonho a possibilidade de que se entendam com profundidade peças em que estão presentes traços da multilinguagem, caso da antológica gravação de “Pesadelo”, do MPB4, em que a melodia, a letra e os arranjos vocal e instrumental se fundem para transmitir uma mensagem forte, contundente, marcante.
Pois os arranjos que citei são de Antônio José Waghabi Filho, o Magro, do MPB4, o mesmo que criou outro clássico, o antológico e impressionante arranjo vocal de “Roda Viva”, de Chico Buarque, do inesquecível festival de 1967. Magro nos deixou ontem. Foi para o céu, cantar e fazer arranjos para os anjos e os deuses da música, da beleza. É isso.
P.s.: Pasquale Cipro Neto publicou esta coluna na Folha de São Paulo, no caderno Cotidiano no dia 09/08/2012 e nos autorizou a reproduzi-la em nosso site. O MPB4 agradece imensamente.