Três lágrimas.
O padre, depois de anos de sacerdócio, se convence de que Deus não existe. Foi assim mesmo. De uma hora para outra, de repente. Chocado, vai à sacristia e tem vontade de quebrar tudo. Contém-se. Percebe que o ódio que o corrói não será aplacado com a destruição dos símbolos da mitologia que por tantos anos impôs aos fiéis. Sua raiva, na verdade, é contra si mesmo. Permanecesse crente talvez conseguisse dominar sua fúria com o silício. Mas já não. Nem na auto-punição purificadora acreditava mais. Chorou, chorou, chorou. Catou o vinho e se recolheu.
Não encontrou a paz esperada no fundo da garrafa. A epifania o devastava. Como se olharia no espelho doravante? Diria para as beatas e para os diáconos, a verdade? Contaria que deus não existe?
Foi ao bispo logo cedo. Olheiras, algo desgrenhado, e sem medos relatou sua conclusão racional. Esperava, lá no fundo de sua subjetividade, ser punido. Desejava-a. Tinha sido cristão até ontem, não conseguiria jamais afastar-se da culpa que estrutura os mitos da cristandade inventada. Ansiava pela pesada pena em face da admissão da apostasia.
Encontrou um meio sorriso no rechonchudo rosto episcopal. Surpreendeu-se. Queria uma bofetada e recebeu um carinhoso “meu filho, e isso é importante?”
Desconcertado, hesitou. Não tinha mais nada a perder e arriscou perguntar ao bispo se também ele chegara à mesma conclusão. A confirmação que em outros tempos talvez servisse de alento, doeu como os cravos devem ter doído na fronte do aluado que há dois milênios alegava ser filho daquele que – agora sabia – não existia.
Ficaram em silêncio, olhos nos olhos. Não se viam, cada qual estava mirando para si, cegos para o entorno. Uma lágrima escorreu, lenta, involuntária. Como que em resposta, outra lágrima surgiu na face do mais velho. Duas lágrimas, só duas, ocuparam o que poderia ter sido uma áspera carraspana ou uma alongada peroração.
Pense nos fiéis, meu filho. Você quer que eles sofram o que você sente agora? Eles já têm tão pouco, vai tirar-lhes a fé? Seja generoso! A mentira faz bem a eles. Sem ela como reagiriam? Para a preservação das relações sociais, meu filho, para que tudo continue como sempre foi, não podemos permitir que eles, nosso amado rebanho, saibam o que racionalmente concluímos.
……
O Direito e a Justiça não subsistem depois do Golpe de 2016. Nunca existiram sob o capitalismo? Existiram, sim! Existiram como mito, tanto quanto o unicórnio, as teorias constitucionais existem sim. Existiram e subsistem o deus do padre e o deus do bispo. E com as mesmas funções.
O unicórnio haverá de prevalecer?
Wilson Ramos Filho, Xixo, doutor em Direito, professor na UFPR, presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora