“Só somos vistos quando acontecem essas coisas”. Uma moradora de ocupação fala ao DCM. Por Mauro Donato

Atualizado em 3 de maio de 2018 às 17:56
A sala da casa da entrevistada (FOTO: MAURO DONATO)

As esdrúxulas exigências para cadastramento de moradia popular e o total descaso e descontrole do poder público sobre o tema estão entre as principais causas da tragédia que se abateu na madrugada da última segunda-feira, quando um edifício transformado em ocupação desabou, consumido por um incêndio. E nada indica que haverá alguma reação positiva em relação ao déficit habitacional e ao direito a moradia digna. Pelo contrário, o receio é que as coisas piorem sensivelmente.

O DCM esteve em uma ocupação no centro da cidade nesta quinta-feira. R.B. pede que nem seu nome, nem seu rosto, nem a fachada da ocupação sejam revelados. Ela teme que o ocorrido no antigo prédio da Polícia Federal inaugure um período de caça às bruxas e uma forte onda de desocupações e reintegrações de posse apoiadas pela opinião pública diante da repercussão do desabamento do edifício por conta das más condições de manutenção.

Ela justifica o pedido do anonimato também por estar ‘muito marcada’ por tantas reivindicações ao longo de anos. Sua última inscrição em um programa habitacional da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) não foi contemplada por considerarem sua renda insuficiente. Como dizia Gabriel Pensador, ‘Aquilo que o mundo me pede, não é o que mundo me dá’.

Portadora de um câncer na laringe, há anos na fila de espera por uma cirurgia no Hospital das Clínicas, R.B. vive há mais de cinco anos em ocupações. Na atual – que não pertence a nenhum movimento social – mora com o marido, seis filhos, e outras 10 pessoas. É uma habitação exígua, com cortinas fazendo o papel de portas, instalação elétrica aparente e precária, nem todos os cômodos possuem iluminação. R.B. e o marido dormem no chão da ‘sala’. Ela disse não se lembrar de quando dormiu em uma cama pela última vez.

A filha de 12 anos tem necessidades especiais e o marido, que era agente de saúde, não consegue trabalhar já que é preciso cuidar de R.B. e da menina que só se locomove em cadeira de rodas. A renda da família, portanto, vem do LOAS (um benefício assistencial ao portador de deficiência menor de 14 anos) e do auxílio-aluguel de 400 reais que R.B. teme perder.

No mesmo dia em que estive lá, estava agendada uma vistoria da prefeitura e ela e seu marido estavam muito preocupados com a hipótese de retirada do auxílio em razão da promessa que as autoridades estavam fazendo em frente às câmeras de TV concedendo auxílio-aluguel durante doze meses aos desabrigados da ocupação cujo incêndio fez desabar. Para R.B. está evidente que irão tirar de uns para dar a outros.

A cozinha de R. B. (FOTO: MAURO DONATO)

Como veio parar nessa ocupação?

Vim da rua, estava na rua depois de sofrer uma reintegração de posse. Eu não podia ficar com as crianças na rua. Entrei com outras 20 pessoas, hoje somos minha família e mais 10.

Você está inscrita em programas de moradia popular. Por que nunca conseguiu?

Eu já fui contemplada uma vez, mas meus dados estavam com um problema, anotaram errado o nome da minha mãe e fui impedida de dar andamento na documentação. Me mandaram então para um terreno. Sabe o que é você ficar dez anos esperando um apartamento ficar pronto e depois te tirarem por um erro besta desses? Sabe o que é seus filhos te cobrando que nunca tiveram uma casa, uma cama?

Você teve um pedido recente negado outra vez…

Essas PPPs do Alckmin eram para ser destinadas a pessoas de baixa renda, mas subiram a exigência para 2,5 salários mínimos. Então os ‘sorteados’ hoje em dia são funcionários públicos, agentes penitenciários, policiais militares, só pessoas com mais condição financeira que têm acesso. Antigamente a listagem não era assim. Então nossa alternativa qual é? Ou fica na rua ou vai para ocupação.

Como está recebendo os comentários sobre os habitantes de ocupações?

É um preconceito horrível. Conheço muita gente que se formou graças à ocupação, porque ou pagava para morar ou pagava para estudar. Tem ocupações que podem ser equiparadas a hospitais de tanta gente enferma que é acolhida ali. E daí vem o cidadão ‘de bem’ dizer que ali só mora vagabundo, bandido e prostituta.

Sente-se abandonada?

Ninguém quer olhar pra gente. Só somos vistos quando acontecem essas coisas, daí político vai lá para aparecer. Mas nenhum deles nunca fez nada. O Doria gastou R$ 2 milhões com propaganda do Cidade Linda (na verdade foram 3,2). Por que não gastou esse dinheiro com moradia? São estruturas precárias? São, mas solução tem, tem imóvel ocioso pra todo mundo.

(de fato R.B. está certa, segundo o Fórum Nacional de Reforma Urbana a cidade de São Paulo possui 230 mil imóveis vazios e ao menos 130 mil famílias sem ter onde morar)

Tem receio do que pode acontecer a partir de agora?

Tenho. Acho que o incêndio foi criminoso, igual ao da favela do Moinho. Vão aproveitar essa desculpa e vai ser um efeito dominó nas ocupações. Foi muito estranho o que aconteceu. Como agora surgiu vaga em albergues? Tiraram albergados para receber as famílias. Mas sempre teve reintegração de posse e nunca existiram essas vagas.

Aceitaria ir para um albergue?

Não. Ontem a noite fui lá (onde estão acampados os sobreviventes) e alertei para não aceitarem. Albergue é igual campo de concentração. Muitas doenças, sarna, a prefeitura envia remédios vencidos, e você não consegue nunca mais sair, se inscrever para nada. Dali é pra rua outra vez. Tem muita gente que vai parar na rua e daí fica com problemas mentais por ter sido tão mal tratada pelo poder público. Gente que depois de uma reintegração de posse é condenada a viver na rua. É como um pós-guerra, tem o cara que vira alcoólatra, outra cai nas drogas, é triste.

A entrevista terminou. Tomo um soco no estômago toda vez que vou a uma ocupação, ao visitar a cracolândia, ao ouvir um relato de uma mãe que não sabe se terá um local para seus filhos dormirem. Enquanto isso, nos país das maravilhas, juízes e políticos recebem auxílio-moradia.