POR TIAGO BARBOSA
A constatação mais incômoda extraída da recém-lançada série documental da Netflix sobre os 50 anos da corrida de Robert F. Kennedy à presidência dos Estados Unidos (Bobby Kennedy for president, 2018) é uma verdade indigesta para quem confia na evolução humana: a história tende a emperrar no tempo quando chagas da sociedade não são curadas.
O país dos anos 1960 retratado pelo seriado enfrentava convulsão social pela insurgência contra racismo, perseguição política, intolerância a hispânicos, pobreza e a malfadada empreitada bélica frente aos comunistas no Vietnã. Cinco décadas depois, mudaram os personagens, mas continuam os dilemas.
A truculência policial flagela os negros e é combatida pelo ativismo de movimentos como Black Lives Matter, a xenofobia contra latinos e árabes tem respaldo no presidente Donald Trump e os atoleiros de guerra, seja Iraque ou Afeganistão, seguem no horizonte do país e na engrenagem de uma economia subserviente à indústria das armas.
Outra similaridade entre as épocas é o uso da violência como mecanismo (individual ou coletivo) para resolver conflitos e silenciar a divergência – seja nos atuais massacres cometidos a partir de bullying nas escolas, seja nos atentados políticos de outrora.
O apelo à força, aliás, ajuda a entender por que certas mazelas do país perduram e a explicar o cultivo no imaginário estadunidense de políticos do porte de Bob Kennedy, morto à bala no auge da campanha presidencial (1968) em uma década polvilhada por assassinatos políticos – o irmão e então presidente, John, foi morto em 1963 e os ativistas pelos direitos civis Malcom X e Martin Luther King Jr. foram executados em 1965 e 1968.
A série documental da Netflix rememora o período turbulento para contextualizar o cadafalso, o legado e as implicações da morte do então senador por Nova York – apesar de o nome da produção se restringir à disputa eleitoral pela Casa Branca.
A narrativa assume contornos épicos porque retrata Bob em trajetória uma ascendente marcada por crescente absorção de bandeiras humanitárias, admiração de colegas e opositores e superação de atos condenáveis do início da carreira política. Ele oscila de filho de pais ricos e conselheiro do irmão presidente a senador empenhado na luta contra a miséria, em defesa dos direitos civis e interlocutor dos trabalhadores agrários explorados
A construção da imagem, no entanto, não é imaculada. O seriado examina percalços como o nepotismo ao virar procurador-geral no governo do irmão, o endosso ao grampo em Martin Luther King Jr, a tibieza em condenar violência contra negros, a participação no comitê macarthista de caça aos comunistas e a ambiguidade sobre a guerra no Vietnã. A influência na política externa – como no Brasil sob golpe militar, visitado por ele – poderia ganhar mais atenção, mas é apenas mencionada.
A “conversão” real às lutas cívicas é em parte justificada pelo pragmatismo com o qual Bob pautou a atuação pública, flexível tanto às demandas das ruas quanto dos gabinetes. Mas a forma como é formulada no documentário fortalece a tônica – tão cara à cultura pop dos EUA – do heroísmo só interrompido pela letalidade das armas, passaporte para a mitificação dos políticos norte-americanos.
A centralidade dada pela série às questões sociais como termômetro da conduta de Bob Kennedy e das articulações políticas em torno dele é fruto do olhar da diretora Dawn Porter, cujos documentários Trapped (sobre a restrição do aborto) e Gideon’s army (o trabalho de defensores públicos) refletem a preocupação pela abordagem dos efeitos das políticas públicas.
A trajetória é recontada de forma convencional em quatro episódios sob vasta pesquisa em jornais, documentos, filmes e imagens colorizadas, material relevante à compreensão do período. Eles são costurados a partir dos depoimentos de correligionários, admiradores, adversários e de outras pessoas com quem a vida de Bob cruzou. O resgate inicial de uma biografia já conhecida dá aos primeiros dois capítulos um verniz de reconstituição histórica nem tão atraente, tampouco inovador.
Mas eles são essenciais para dosar a segunda parte, quando o clímax do sucesso eleitoral se torna o fim prematuro da liderança política e a incerteza de um futuro novamente amputado pela violência. A aversão de eleitores ao democrata, as falhas na segurança, o som das ruas e o medo nunca verbalizado de reviver a sina do irmão são bem embalados como suspense até a tragédia na cozinha de um hotel californiano.
Na reta final, o tom é mais emotivo. Mas não piegas. Os relatos revalorizam a figura do político e o revalidam o legado pelas mãos dos simpatizantes – como a viúva, presente em manifestação por melhores condições de trabalho no campo em 2016.
O desfecho também ganha força porque revela, com informações atualizadas, como a investigação foi prejudicada e fertilizou teorias conspiratórias já comuns à morte do irmão, John. Arquivos tornados públicos recentemente revelam a destruição de provas e o desprezo de depoimentos pela polícia na investigação. A versão oficial atribui o crime ao jordaniano Sirhan Bishara Sirhan – condenado à prisão perpétua, ele alega inocência.
Apesar de soar como tributo ao senador, Bobby for president mostra como o ciclo da história é impiedoso com feridas não cicatrizadas pela sociedade.
Vale para os Estados Unidos. Vale para o Brasil.
Meio século atrás, o país sul-americano era sufocado por um golpe militar cuja força impediu um presidente, prendeu, torturou e matou adversários e censurou a imprensa. É o mesmo lugar onde, hoje, uma ex-presidente foi derrubada, ideias fascistas andam à solta e a corrida à presidência tem um favorito apeado da disputa – pela toga, não pelas armas.
É difícil digerir.