“O Processo” deveria ser obrigatório nas salas de aula. Antes que o Escola Sem Partido envie sua tropa. Por Mauro Donato

Atualizado em 15 de maio de 2018 às 9:42
Poster do documentário “O Processo”. Foto: Divulgação

Não é possível praticar spoiler de um filme que retrate Jesus, certo? Todo mundo sabe como termina a história. Da mesma forma, relatar a cena final de O Processo (em cartaz a partir da próxima quinta-feira, 17) igualmente não estragaria surpresa alguma. Mesmo que ela não seja a crucificação de Dilma.

A obra vai um pouquinho além no tempo e a cena final traz imensas colunas de fumaça ocasionadas por bombas lançadas por ocasião dos protestos contra o arquivamento do processo por corrupção contra Michel Temer – já desvencilhado da função decorativa e então substituto no cargo. Uma cena que, aliás, poderia até estar no início do filme, como uma epígrafe de um livro, a lhe conferir o clima e a representar de que trata o tema.

Pois essa é a melhor representação plástica sobre o ocorrido naquele período de 271 dias, desde 2 de dezembro de 2015 a 31 de agosto de 2016. Uma cortina de fumaça de modo a ofuscar o que de fato se almejava com o afastamento da presidente, mas, sobretudo, a maneira como foi articulado o famigerado impeachment.

A contundência fica ainda maior pelos recursos utilizados pela diretora Maria Augusta Ramos. Ou pela falta deles. Não há identificação dos ‘personagens’ por meio de legendas. E a ausência de um narrador – mesmo que não tendencioso – confere liberdade total ao espectador para que capte os acontecimentos, suas motivações e modo de operar. E assim, visto dos bastidores de todo o processo, mesmo o mais paneleiro dos brasileiros irá concordar: foi um golpe descarado (sim, o paneleiro jamais irá admitir, mas se for intelectualmente capaz e sincero, em seu íntimo reconhecerá).

São inúmeras as cenas de diálogos que ficaram famosos posteriormente via imprensa e ‘premonições’ a respeito do verdadeiro intento do que estava a se passar que, flagrados ali, no exato instante em que foram proferidos, deixam o espectador boquiaberto. 

Lindbergh Farias dando uma esfrega em Aloysio Nunes e Cunha Lima após ler a tal ‘Ponte para o Futuro’ e revelar a todos que o plano verdadeiro era o de retirar direitos em várias frentes, sobretudo a trabalhista, que atenderia ao empresariado e aos ruralistas; O indefensável “Tem que ser um acordo, com o supremo, com tudo (…) Precisa estancar essa sangria”, de Romero Jucá; O inconformismo da senadora Fátima Bezerra ao perguntar aos colegas: “Onde isso vai parar? E se daqui a pouco resolvem prender o Lula?”; As análises de José Eduardo Cardoso, responsável pela defesa de Dilma, ao conhecer o teor das acusações e debater os argumentos com seus assistentes. 

É impossível conter o riso quando Raimundo Lira, presidente da Comissão Especial do Impeachment, contestado sobre sua parcialidade, defende-se alegando a possibilidade de ter deixado de observar algumas coisas por ter ido ao banheiro.

As sequências são provas incontestes de que houve um golpe parlamentar. Não por acaso o filme tem sido premiado internacionalmente, pois para quem está de fora, desprovido da paixão partidária, não fica dúvida nenhuma sobre a armação. Só não vê quem não quiser.

Em meio a tudo isso, no melhor estilo ‘a vida imita a arte’, Dilma Rousseff é registrada incrédula. Tal Joseph K, o personagem de Kafka em O Processo, livro que batizou o filme, a presidente mostra-se perdida naquele mundo surreal, não compreende de que está sendo acusada, de onde estão partindo os ataques, e como um absurdo daqueles pode prosperar. 

As tais pedaladas, afinal, eram uma prática recorrente de todos os governantes. O próprio relator, Antônio Anastasia, praticou-as centenas de vezes quando governador de Minas Gerais (assim como Alckmin e Serra foram acusados nesta segunda-feira, convenientemente quando ambos não estão no exercício de cargos). Apontado, Anastasia ficou mudo.

O filme é ainda uma excelente oportunidade de constatar que o tão cobrado mea-culpa petista foi feito ainda no calor do processo, ao menos por Gleisi Hoffmann e Gilberto Carvalho. E vê-los ali, pelo buraco da fechadura, confere veracidade ao lamento. Não que substitua o acerto de contas que deveria ser feito nos alto-falantes para o país inteiro, mas já é alguma coisa saber que a consciência existe.

Quando se está no meio do furacão, é difícil saber para que lado ele está indo. Talvez isso justifique a aposta da diretora Maria Augusta Ramos em dar tanto tempo para Janaina Paschoal durante o longa. 

A diretora do filme certamente não sabia o que aquela mulher pretendia nem onde iria chegar depois de atingir o objetivo. E Janaina, exatamente pela longa exposição, revela-se um imenso buraco negro, patético (mesmo sem precisar recorrer ao cover do Iron Maiden). 

Sem nenhuma apresentação de provas, seus discursos são meras e infindáveis abstrações em defesa dos ‘patriotas’ e das ‘criancinhas’. É sempre um tal de culpar ‘o todo’, ‘o conjunto’. Um powerpoint dallagnolesco ambulante. E deprimente, sobretudo ao vermos registrado seu conchavo no posicionamento contra o aborto.

Sem dar nomes aos bois, o filme escancara quem realmente traiu o povo, quem articulou um golpe baixo, quem mentiu com aqueles votos ‘contra a corrupção, pela família, por deus, pelos meus filhos’, cujos autores depois foram desmascarados e muitos deles hoje respondem a processos ou já estão atrás das grades. O documentário O Processo deveria ser obrigatório nas salas de aula. Antes que o Escola Sem Partido envie sua tropa de choque acéfala.