POR MIGUEL ENRIQUEZ
Até agora, pelo menos, o Brasil tem se saído razoavelmente ileso diante da tempestade cambial que levou a vizinha Argentina a pedir um empréstimo de emergência de US$ 30 bilhões ao Fundo Monetário Mundial (FMI), ao mesmo tempo em que jogava a taxa de juros às alturas, na casa dos 40% anuais.
Esse quadro de deterioração econômica marcou a desmoralização do modelo neoliberal aplicado no país vizinho pelo presidente Maurício Macri, um meteórico “queridon” do mercado financeiro internacional, apontado por 10 entre 10 comentaristas da mídia nativa, como um exemplo a ser seguido neste canto do mundo.
Praticamente ignorando seu enlevo e entusiamo anterior com o ora claudicante governo de Buenos Aires, a imprensa brasileira tratou de ignorar o fiasco de Macri e resolveu assestar seu foco na resiliência do Brasil à súbita valorização do dólar americano no exterior.
Como fator principal para essa capacidade de superar as turbulências, sem maiores transtornos, emergiu o volume extraordinário de reservas cambiais do Brasil, da ordem de US$ 370 bilhões.
Miriam Leitão, a decana do jornalismo de economia do grupo Globo, não deixou por menos em celebrar essa condição excepcional. “Como o Brasil ainda tem uma reserva cambial de US$ 370 bi, o risco de uma crise cambial caiu muito”, escreveu em sua coluna. “O BC ainda tem a capacidade de aliviar as variações no dólar com os contratos de swaps, sem se desfazer das reservas.”
Sempre pronta a criticar os governos do PT, Miriam — que, como lembrou o jornalista Kiko Nogueira, consegue enfiar Lula e Dilma até ao comentar sua desilusão com o general Ernesto Geisel — estranhamente conseguiu deixar de fora os alvos preferidos de suas diatribes.
Não é difícil entender o porquê dessa omissão. Caso se dispusesse a discutir com seriedade a origem dessa montanha de dólares que blinda a economia brasileira, a colunista do diário da família Marinho teria de referir-se ao papel de Lula e Dilma na acumulação e preservação das reservas cambiais, que nada devem à equipe econômica do governo Temer, diga-se.
E muito menos ao estadista Fernando Henrique Cardoso, e a seu mago das finanças, o banqueiro Armínio Fraga. Na verdade, ao passar o bastão a Lula, em janeiro de 2003, FHC e Fraga deixaram como legado US$ 37,7 bilhões em caixa, apenas um décimo das reservas atuais. Ainda assim, provenientes de socorros de emergência do FMI. À época, o dólar estava cotado a R$ 3,92 (R$ 10 em valores de hoje, corrigido pelo IPCA) e o governo não tinha como enfrentar a especulação contra a moeda.
Os US$ 37,7 bilhões eram um saldo de três pedidos de ajuda do governo FHC. O primeiro deles, aconteceu em novembro de 1998, no fim do primeiro mandato do tucano, logo após o agravamento da crise russa, quando as reservas externas viraram pó.
Em apuros, FHC conseguiu um empréstimo de US$ 41,5 bilhões, concedidos por bancos internacionais como o Bird e o BID, e pelo FMI, que passou a monitorar a economia brasileira, impondo e fiscalizando a execução de um programa de austeridade.
Três anos depois, em setembro de 2001, o governo voltou a passar o pires, invocando fatores externos, como as turbulências do mercado internacional, o atentado de 11 de setembro e a crise da economia argentina – foram colocados à disposição do país mais US$ 15,6 bilhões.
Beneficiado por um conjuntura favorável, graças a um ciclo de alta das commodities no mercado internacional, Lula foi revertendo a situação, ao assumir a presidência, em 2003. Em 2005, com apenas dois anos de mandato, quitou a dívida contraída por FHC e livrou o país das exigências do FMI. Mais: em 2009, pela primeira vez na história, o Brasil emprestou dinheiro ao Fundo. Foram nada menos de US$ 10 bilhões, oferecidos para ajudar países emergentes em meio à crise internacional.
Em 2012, novo empréstimo de US$ 10 bilhões, agora para a zona do euro – com uma exigência: participação mais efetiva dos países em desenvolvimento nas decisões do Fundo. Saldo importante: os representantes do governo brasileiro nunca mais tiraram os sapatos nos aeroportos americanos, como aconteceu por três vezes com Celso Lafer, Ministro das Relações Exteriores de Fernando Henrique, no início de 2002.
Iniciado por Lula, o chamado colchão cambial continuou sendo forrado por Dilma, até atingir os US$ 370 bilhões registrados à época do impeachment. Graças a ele, o país pode enfrentar a crise financeira global, que estourou em setembro de 2008, com a quebra do banco americano Lehman Brothers.
Com lembra o repórter Douglas Mota, numa reportagem do Globo de 15 de setembro de 2015 com o título de “Brasil conquista o título de bom pagador na era Lula e atrai investimento”, a crise não impediu que o país obtivesse, depois dos retrocessos da era FHC, o grau de investimento no mercado internacional, concedido pela agência de classificação de risco Standard & Poor’s (S&P), que elevou a nota brasileira de “BBB” (grau de especulação) para “BB+”.
“Com a reputação abalada durante anos após decretar moratória da dívida externa, o Brasil, já no segundo governo Lula, tornava-se o último dos países do Brics (grupo formado também pelos emergentes Rússia, Índia, China e África do Sul) a alcançar essa chancela de bom pagador”, escreveu Mota.
Que tal uma consulta aos arquivos do jornal, dona Miriam?