Como foi o encontro de Dilma com Lula na prisão. Por Pablo Gentili

Atualizado em 3 de junho de 2018 às 7:58
Dilma, ao deixar a carceragem (foto de Eduardo Matysiak)

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PÁGINA 12

Dilma anda depressa. Um enxame de jornalistas a segue de longe, do outro lado da cerca que limita o perímetro do prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde o ex-presidente Lula está preso. Na espera o ator americano Danny Glover. Ambas serão as únicas duas pessoas que, fora de seu ambiente familiar, poderão visitá-lo durante a semana. Já passou das 4 da tarde e, embora a temperatura tenha caído para 18 graus, Dilma sente calor. Não é porque tenha corrido para não se atrasar. Ela pensou que era um calor de nervosismo . Mas logo soube que era de indgnação.

A Superintendência da Polícia Federal em Curitiba é um prédio moderno de 18 mil metros quadrados e muito bem equipado. Foi inaugurado em 2007. Lula também estabeleceu um plano de carreira muito favorável para os agentes federais, aumentando exponencialmente seus salários e benefícios trabalhistas. Além disso, deu-lhes a autonomia e a independência que sempre haviam reivindicado.

É a indignação, Dilma se repete em silêncio, ao entrar e observar a placa que afirmam que a construção, agora um dos símbolos mais tenebrosos da infâmia, foi inaugurado quando o Brasil sonhava em se tornar uma nação construída sobre os direitos dos cidadãos, quando sonhou acabar com os privilégios de suas elites e com a impunidade das classes dominantes coloniais, escravas e racistas. Para isso, era preciso lutar contra os crimes dos ricos em um país que tinha uma justiça transformada em uma máquina de prisão de trabalhadores pobres, jovens negros, sem-terra, os sem-teto e sem direitos. A Superintendência de Curitiba, como a de muitas outras regiões do país, foi treinada para combater a lavagem de dinheiro e os crimes financeiros. Agora, 15 anos depois, tornou-se a prisão onde o futuro democrático da nação está preso.

O dia começa a perder sua luz. Faz dois meses desde que o céu de Curitiba não tem brilho.

Um policial pergunta a Dilma se ela traz um aparelho eletrônico. Eles lhe concederam o benefício de não revistá-la. Na companhia de três agentes, ela vai até o elevador que a levará ao terceiro andar. Lá, ela vai subir um andar até as escadas para a “sala especial”, eufemismo policial usado para chamar a cela em que Lula está preso.

A tragédia

As infâmias são sempre tragédias. E as tragédias furam, rasgam a alma do povo, até que se tornem fermento de aprendizagem que o ensine a se proteger prepotência, arbitrariedade e violência dos poderosos.

Nessa montanha de escombros em que que se transformou a democracia brasileira, em 31 de maio foi consumado o que pode ter sido a ignomínia mais cruel do golpe. Ainda é a presidente eleita Dilma do Brasil (ela foi eleita em 2014 e derrubada por um golpe de Estado em 2016) e deverá entrar na prisão para visitar seu antigo antecessor. Teve que escalar os quatro malditos andares chegar ao que os policiais chamam de “sala especial”, mas que  nada mais é do que uma célula imunda, onde está Lula. E ainda lhe deram apenas meia horas antes de ser chamada para ir embora.

A arbitrariedade jurídica de um tribunal disposto a condenar sem provas e a arrogância autoritária de um juiz sem brilho, blindado pela impunidade e messianismo, os alcançavam de novo como vítimas.

A cela

Dilma e Danny Glover abraçam Lula. Ela o vê um pouco mais magro. Deve ser por causa da falta de exercício, pensa.

A cela é pequena. 15 metros quadrados em quatro paredes. Contra uma delas, uma cama. Contra outra parede, um armário. No meio, uma mesa com quatro cadeiras. Do outro lado da cama, uma televisão também pequena, onde apenas os canais abertos estão sintonizados. Ao lado, uma esteira para exercícios físicos. Lá Lula passa o dia todo, todos os dias, há quase dois meses. Recebe uma visita semanal de sua família e de algumas personalidades ou amigos, embora estes por um período muito curto, nunca mais de uma hora. Na cela existem alguns livros. Lula lê, reflete, assiste televisão. Quando recebe visitas,  em geral falam sobre os desafios que estão se abrindo para um Brasil cuja decadência política parece não ter fim.

O ator americano Danny Glover permanece mais de 15 minutos com eles. Deve pegar o voo que o levará para São Paulo e de lá para os Estados Unidos. Ele expressa seu amor e apoio a Lula. Expressa também seu compromisso de continuar lutando pela justiça, para que Lula reconquiste a liberdade e o Brasil, a democracia.

Dilma e Lula são deixados sozinhos, como tantas outras vezes. Mas, nesta ocasião, parece que a história voltou. Como se estivessem vivendo um remake mal contado daqueles anos em que ele foi preso por ordem da polícia política da ditadura e ela foi presa em um centro de detenção militar, torturada, espancada, humilhada. A história parece desabar sobre suas cabeças, como se tudo começasse novamente.

Dilma observa a cela. Não há nada pendurado nas paredes. A “sala especial” está isolada de tudo e, lá, Lula não pode ter contato com nenhum outro preso. As ditaduras sempre souberam: a pior condenação que pode ser imposta a um ser humano é a solidão.

Lula diz que está indignado. Ele repete isso como uma espécie de oração. “Eu não me permito o direito de odiar porque o ódio envenena a vida”, ele diz a Dilma com voz firme. “O que eu tenho é uma imensa indignação pelo que fizeram comigo e pelo que estão fazendo com o país”, acrescenta. “Eu espero, eu vivo esperando, que eles mostrem que eu sou culpado de alguma coisa.”

Eles falam sobre a Petrobras e como o governo de Michel Temer privatizou setores lucrativos e estratégicos, como a política de preços de combustíveis prejudica severamente uma economia em crise, já que a opção desastrosa de exportar petróleo bruto e importar seus produtos derivados já mostra suas conseqüências, em um dos países cuja estatal petrolífera havia se tornado uma das mais competitivas e lucrativas do mundo. Eles saqueiam recursos naturais e privatizam a Petrobras, fazem o que as oligarquias insensíveis e corruptas sempre quiseram fazer. E para fazer o que sempre quiseram, precisaram cassar Dilma e impedir que Lula voltasse a ser presidente de um país soberano e digno. Ambos sabem disso. Eles falam sobre isso.

“Estou preocupado com a minha situação”, diz Lula. “Mas estou muito mais preocupado com o Brasil e o povo brasileiro.”

Faltam dez minutos para 5 da tarde e Dilma deve sair.

Eles dizem adeus com um grande abraço. Tantas vezes eles se abraçaram, tantas vitórias os iluminaram. Tantas derrotas os uniram. Eles se abraçam sem dizer nada ou dizendo tudo um ao outro.

Dilma sai da cela, mas, antes de chegar às escadas, ela retorna. E volta para abraçá-lo outra vez.

Eles não choram. Desta vez, eles não choram. Eles cumprem talvez uma promessa que nunca fizeram, mas que parecem dispostos a respeitar.

No dia em que foi demitida, Dilma conversava com seus colaboradores mais próximos, quando viu, surpresa, que Lula estava atrás de uma coluna, distante e estranho. Ela se aproximou e viu que ele estava chorando inconsolavelmente. Ela abraçou-o em silêncio.

Dois anos depois e alguns minutos antes de se entregar à Polícia Federal, Lula procurou por Dilma para se despedir. Ele a encontrou em um canto da sala, chorando. Eles se abraçaram novamente.

“Vamos resistir, temos que resistir”, disse Lula ao sair.

Dilma desce os quatro andares rapidamente. Ao sair, uma profunda tristeza a invade. Ela gostaria de ficar sozinha, ela se sente triste, imensamente triste.

Caminha até os jornalistas que esperam por ela do outro lado da rua. Pouco se interessa pelo que vão lhe perguntar, ela só quer chegar ao acampamento, que há quase dois meses permanece no mesmo lugar, a poucos metros do prédio onde seu líder está preso. Homens e mulheres corajosos e heróicos, que não aceitam que a história seja transformada em uma avenida na qual o poderoso desfila, enquanto os pobres observam sem ter outros sentimentos além da humilhação, submissão e insignificância.

Dilma se aproxima dos militantes que acampam em Curitiba. Seus gritos e músicas estão devolvendo a alma ao corpo. “Dilma guerrera / da pátria brasileira”. Ela ainda não chegou e já sente seus abraços e beijos. Ela ainda não chegou e percebe que nunca os deixou.

Dilma caminha e sente as pernas novamente. Seu coração bate cada vez mais rápido, suas costas se tornam firmes, seus olhos brilham, sua risada explode. “Resistir”, pensa em voz alta. “Para não desistir. Nunca desistimos. Nós vamos resistir “.

E se mistura à multidão que espera por isso.

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Pablo Gentili é secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais.