As manifestações de Sergio Moro no depoimento de Fernando Morais deram a medida da regressão cultural do Brasil depois que o juiz de primeira instância foi alçado à condição de estrela do noticiário brasileiro.
“O processo não deve ser utilizado para esse tipo de propaganda”, disse Moro, depois que Fernando Morais, relatando sua experiência de biógrafo de Lula, disse o que ouviu do roqueiro Bono Vox, que comparou o ex-presidente a Nelson Mandela.
Morais arregalou o olho, afastou o dedo indicador que apoiava a face e exclamou: “Propaganda!?!” Num momento posterior da audiência, o escritor explicou como trabalha e tem suas despesas pagas pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras brasileiras.
Moro confunde propaganda com jornalismo e sinaliza que se incomoda com referências positivas ao ex-presidente Lula. À primeira vista, pode parecer que rivaliza com Lula. Mas talvez não.
O comportamento dele não é muito diferente da reação das amigas da mãe de Carlos Zucolotto Júnior, padrinho de Moro, diante de uma foto que a mostrava abraçada ao juiz, ainda em 2015:
— Conta aí dona Olga. Quando vai ser o dia dos rojões?
— Fala pra ele prender logo o Lula e a Dilma kkkkk.
Olga diz que perguntou:
— Já falei. Ele só deu risada, disse que seria o maior foguetório do Brasil, adoro.
E reforça:
— O maior foguetório no Brasil. Ele só sorri.
Como essas senhoras, o que Moro demonstra é preconceito. Preconceito de classe.
Lula ascendeu socialmente, mas, para setores expressivos da classe média, ainda é visto como o brasileiro que deveria se manter em posições subalternas.
O que gente como Moro e seu círculo mais próximo não perdoa é o sucesso de pessoas como Lula.
Há casos de pobres que ascendem, mas, depois que mudam sua condição social, se comportam como ricos.
São assim também os negros que, aceitos pelos brancos, se comportam como brancos.
Dizem que não sofrem preconceito, e talvez não sofram mesmo, já que não vivem como negros.
Lula subiu, mas se manteve conectado às suas raízes.
Como presidente, incluiu os pobres no orçamento e o vi uma vez, como repórter de TV, ele já presidente, passar uma tarde de Natal em reunião com catadores de latinha debaixo de um viaduto no bairro do Sumaré, em São Paulo.
Como esquecer a foto dele, presidente, caminhando pela praia com uma caixa de isopor na cabeça?
Com a mesma cabeça erguida, se viu Lula polarizando com George Bush em evento internacional.
Ou sendo elogiado por Barack Obama em reunião de líderes mundiais. Ele era o cara nesses encontros.
Moro é a expressão do brasileiro que não aceita que Lula tenha dado certo. É o caso de patologia social, a patologia de quem não tolera a pobreza.
Ontem mesmo, deu outro exemplo que confirma a tese.
Ao interrogar Fernando Henrique Cardoso, pediu desculpas para fazer uma pergunta que não tinha nada a ver com o processo.
Queria saber se alguma empresa que o contratou para palestra fez reforma em imóvel de propriedade dele.
Disse que a pergunta era necessária em razão de uma questão colocada pela defesa de Lula.
O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, lembrou que não havia colocado nenhuma questão nesse sentido.
Era, naturalmente, uma provocação do juiz a Lula, sem relação com o processo, e Moro, ao se explicar, mostrou a pobreza de seu vocabulário, ao repetir duas vezes uma palavra que usa sempre para justificar perguntas sem propósito: “contexto”.
Fernando Henrique disse que não. Mas não é FHC quem está sendo julgado. E, se estivesse, o que não faltaria é motivo para perguntas pertinentes na esfera que mistura o público e o privado.
O Instituto Fernando Henrique Cardoso foi criado e é mantido por empresas que participaram do processo de privatização realizado em seu governo.
A empreiteira Camargo Correia, no primeiro ano do primeiro mandato de Fernando Henrique, construiu uma pista de pouso em propriedade vizinha à fazenda do então presidente.
Os demais vizinhos nunca viram nenhum avião da empresa descer ali, mas, em compensação, o movimento de aeronaves com o então presidente e com seus parentes e amigos era intenso.
Fernando Henrique foi pressionado pela namorada Mirian Dutra para a reforma do apartamento dela em Barcelona, na Espanha, e um dinheiro de origem obscura, administrada por José Serra, custeou a obra.
Mirian Dutra, mãe de um jovem cuja paternidade foi atribuída a Fernando Henrique, teve redução de salário pago pela TV Globo — que ela recebia sem que precisasse trabalhar — e foi um concessionário do governo federal, dono da empresa Brasif, quem arrumou um contrato de fachada para lhe garantir 3 mil dólares mensais.
O filho de Fernando Henrique Cardoso, Paulo Henrique, recebia 10 mil dólares por mês da Light depois que a empresa foi privatizada. Mas nada disso, para Moro e pessoas como ele, como as amigas de Zucolotto, tem importância.
Ao questionar Fernando Henrique Cardoso sobre reforma em propriedades, Moro tentou humilhar e debochar de Lula.
Mas, para o brasileiro que ainda mantém capacidade de discernimento, o que conseguiu foi confirmar que ele usa a autoridade conferida pelo estado para extravasar ódio e preconceito. Preconceito de classe.
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PS: Se Moro está preocupado com o contexto em que FHC usufrui de imóveis, há mais quatro pistas: o Trump Tower, onde o filho de Mirian Dutra ficou hospedado quando passou uma temporada em Nova York; o apartamento que ele comprou para o jovem, em Barcelona, por 60 mil euros (pago em dinheiro); o apartamento que a companheira dele adquiriu na avenida Angélica, em São Paulo, que custou 950 mil reais, e o apartamento na Avenue Foch, em Paris, que o ex-presidente usa — este estaria em nome de Jovelino Mineiro, seu ex-aluno, genro de Abreu Sodré — curioso é que Jovelino tem um apartamento em nome dele e, no mesmo prédio, a mulher, Maria do Carmo, tem um em nome dela. Para que dois? Coisa de milionário excêntrico ou laranja.