Escrevi este texto para a revista Época quando Guga se aposentou em 2008, e ao reler hoje decidi republicá-lo no Diário.
De Guga lembraremos:
• a sublime esquerda paralela com uma só mão, transformada em arte magna e arma fatal num tempo em que os jogadores, quase todos, utilizavam as duas mãos em rebatidas enfadonhas e repetitivas destinadas a esperar o erro do oponente.
• os gemidos ao bater na bola, que rompiam o silêncio solene das quadras de tênis, às vezes monótono para quem, como eu, cresceu no alarido caótico das arquibancadas do futebol.
• a extrema gentileza diante dos adversários, uma virtude que o fez sempre se desculpar por pontos ganhos sem querer, e também dar como boas bolas cantadas erradamente fora pelos juízes.
• o inglês claudicante, o francês precário, o alemão inexistente com que ele se dirigiu a platéias mundo afora ao disputar títulos.
• a coragem em arriscar, em buscar definir os pontos em lances perigosos, numa época em que jogadores de saibro como ele trocavam dezenas de bolas fracas, típicas de maricas. Sua agressividade quebrou um paradigma no piso de saibro, em que foi rei. A bravura acelerada de seu jogo lhe permitiu fazer campanhas brilhantes em pisos rápidos, como o carpete, no qual ganhou uma Masters Cup depois de bater Agassi e Sampras em condições que lhe eram amplamente desfavoráveis.
• o saque de gente grande, que lhe permitiu virar games complicados, e as sucessivas foot faults, as faltas de pé, que acontecem quando o jogador pisa na linha antes de sua raquete tocar a bola no serviço; nem sempre essas faltas foram marcadas, e a indulgência de muitos juízes pode ser atribuída à simpatia extraordinária de Guga.
• a humildade com que se comportou quando foi rei, digna de um filósofo grego ou um sábio oriental; ergueu troféus não como quem quer mostrar ao mundo quanto é grande, mas como quem quer compartilhar sua glória com os súditos.
• a lealdade perante seu mestre, Larri Passos, em quem encontrou um substituto para o pai, morto quando ele era garoto; Guga e Larri alcançaram o cume da beleza que as relações entre discípulos e mestres podem ter.
• o amor demonstrado por sua família; mãe, irmãos, e a avó, que uma vez na Alemanha irrompeu na quadra num carro que seu neto acabara de ganhar ao sagrar-se campeão; como se fizesse questão de dizer que sem a família não teria ido a lugar nenhum.
• as namoradas bonitas, nenhuma das quais no entanto pareceu capaz de comover o garoto solteirão.
• a teimosia em fazer a curtinha vencedora depois de sucessivas tentativas fracassadas.
• a impossibilidade de acrescentar a seu repertório de golpes o slice (o golpe com efeito em que a raquete “corta” a bola como se a fatiasse), mesmo depois de Roger Federer tê-lo ressuscitado; Guga pareceu quase sempre um domingueiro ao aplicar slices; tamanha era sua avidez por atacar que jamais se aplicou no slice, uma bola lenta destinada a quebrar o ritmo do adversário e não a acuá-lo, como Guga sempre quis fazer.
• a freqüência com que bateu detestáveis tenistas argentinos.
• o autocontrole, que lhe permitiu virar jogos quase perdidos e também baixou ao mínimo sua cota de raquetes quebradas e discussões inúteis com juízes, ao contrário de um de seus grandes rivais e contemporâneos, o russo Marat Safin.
• a generosidade, o sentido de retribuição social, expresso em suas ações de filantropia.
• o sorriso de menino orgulhoso de ser brasileiro; um brasileiro vitorioso em terras distantes porque em seu próprio país não há torneios expressivos.
• a demora em deixar as quadras, o que fez o tenista que inspirava medo a quem estava do outro lado da quadra perder jogos de anões em sua etapa final; lembrou mais Mike Tyson do que Pelé na escolha da hora de se despedir.
• o quadril traiçoeiro, e a dificuldade psicológica em lidar com ele, o que o tornou um adversário imbatível.
• as lágrimas da foto que ilustra esta página, derramadas em seu último jogo no Brasil; em seu rosto se estampava o que Camões chamou de a grande dor das coisas que passaram.