Do ConJur
Poucos temas testam tanto os limites da separação entre Direito e moral quanto o aborto. E não poderia estar em outro foro além do Supremo Tribunal Federal, destino de praticamente todos os temas importantes para a sociedade brasileira dos últimos anos.
A constitucionalidade da criminalização do aborto foi levada ao Supremo por meio da ADPF 442. Entre estas sexta (3/8) e segunda-feira (6/8), o tribunal promoverá audiências públicas para discutir o pedido feito na petição inicial. São 40 inscritos, o que a transforma na audiência pública com o maior número de participantes da história do tribunal.
Fora dos muros e corredores do STF, Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da UnB, fundadora e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética e ativista dos direitos das mulheres, vem sofrendo ameaças por suas posições. Uma das principais cabeças da ação que suscitou o debate, ela analisa que sofrer “uma reação de ódio e de rechaço ao processo democrático”.
Para a pesquisadora, o contexto do Brasil e América Latina revela um descompasso entre legislação e dia a dia. Ela enfatiza que, ao mesmo tempo que somos uma região com umas das legislações sobre aborto mais restritivas do mundo, somos também a região com as taxas mais altas de aborto.
“Isso significa inclusive que o processo de estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas evidências sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e altera as relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas morais que atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de enfrentar nesse momento”, afirma, em entrevista à ConJur.
A despeito desse quadro, a ação recebe críticas que apontam o Legislativo como o poder com legitimidade para apreciar uma possível alteração. Aqueles que sustentam essa posição se escoram no argumento do ativismo judicial exacerbado. A pesquisadora rebate a discordância.
“Nesse caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas chamado a se pronunciar sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está compatível ou não com a própria Constituição. É simplesmente isso”, replica. Para ela, ao contrário, é exatamente função da Corte Suprema avaliar a garantia de direitos fundamentais.
Não é a primeira vez que o tema tem potencial de causar atrito entre os poderes. A ação de descumprimento de preceito fundamental da Anis foi apresentada, juntamente com o PSOL, no Dia da Mulher, em 8 de março de 2017. A construção da ADPF ganhou força depois que a 1ª Turma do STF, por maioria, entendeu que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto, no fim de 2016.
Naquele momento, inclusive, um dia após a decisão da Turma, houve uma reação no Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) uma comissão especial com o objetivo de incluir na Constituição uma regra clara sobre aborto. “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Maia.
O Código Penal de 1940 é o texto legal que rege o tema no Brasil. Desde então, nenhuma alteração foi feita no âmbito legislativo. A única mudança se deu por meio do próprio Supremo, em ação também capitaneada por Débora Diniz. Em 2012 o Plenário do STF entendeu constitucional o aborto em casos de anencefalia, por se tratar de uma condição incompatível com a vida.
Prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Para além disso, o aborto é legal em casos de gravidez resultante de estupro e risco de morte da gestante.
O objetivo é que o STF exclua dos artigos 124 e 126 do Código Penal a interrupção da gestação induzida e voluntária nas primeiras 12 semanas, “de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento”.
Os proponentes argumentam que a proibição da prática viola preceitos da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à liberdade e igualdade).
A ação que pretende descriminalizar o aborto teve o maior número de pedidos de ingresso como amicus curiae da história da corte: foram 40 entidades interessadas em apresentar posição sobre o assunto. Na convocação da audiência pública, a relatora, ministra Rosa Weber, afirmou que os pedidos de amici curiae serão analisados depois que a sociedade for ouvida.
A própria audiência terá número elevado de participações, com 44 expositores, com 20 minutos cada para argumentação, divididos em dois dias. Esse número foi resultado da seleção feita pelo gabinete da ministra Rosa Weber depois de terem recebido mais de 500 inscrições.
Leia a entrevista:
ConJur — Há críticas que afirmam que o Judiciário não é o Poder com legitimidade para tratar de temas como do aborto, pois seria inevitável o ativismo. Como entende isso? O Supremo é o espaço para essa discussão?
Débora Diniz — Sim, o Supremo Tribunal Federal é o espaço legítimo para a discussão sobre direitos fundamentais violados. Esse é o seu papel em ações de controle de constitucionalidade, que é o caso da ADPF 442. Nesse caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas a se pronunciar sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está compatível com ela. É simplesmente isto: a possibilidade de interpretar a adequação do Código Penal de 1940 de acordo com a Constituição Federal e, inclusive, numa avaliação de garantia de direitos fundamentais, é uma função regular da corte.
ConJur — A Anis teve e tem atuação forte em questões como a do aborto e outras correlatas. Desta vez, viraram notícia as ameaças que a senhora recebeu, inclusive de morte. É a primeira vez que isso acontece?
Débora Diniz — Não. O episódio mais marcante foi justamente quando a ADPF 54, que decidiu pela descriminalização do aborto em casos de anencefalia do feto, estava em curso. É uma reação de ódio e de rechaço ao processo democrático de debate sobre questões sensíveis. Mas como da outra vez, o processo da corte se mostrará maior que as intimidações.
ConJur — A regulamentação do aborto no Brasil é o Código Penal e permanece a mesma desde 1940. A única mudança foi a autorização para o aborto de fetos anencéfalos. Por que a lei permanece tantos anos sem mudanças e se mantém restrita?
Débora Diniz — Vivemos num contexto de hegemonia política muito hostil às mulheres, inclusive, compartilhado na América Latina e no Caribe. Ao mesmo tempo que somos uma região com umas das legislações sobre aborto mais restritivas do mundo, somos também a região com as taxas mais altas de aborto. Isso significa inclusive que o processo de estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas evidências sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e altera as relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas morais que atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o Supremo tem a oportunidade de enfrentar nesse momento.
ConJur — As decisões tomadas no referendo na Irlanda e depois pela Câmara dos Deputados da Argentina sobre aborto têm reflexo na discussão feita por aqui?
Débora Diniz — Sim, essas decisões têm um efeito claro. Sobretudo a Argentina, pela proximidade de vizinhança. Como o Brasil e outros países da América Latina e do Caribe, a Argentina é um país entranhado na cultura patriarcal, um país onde, assim como no Brasil, há certa confusão na separação entre religiões e Estado no cotidiano da vida pública, que acredita no uso da lei penal para controlar as decisões reprodutivas das mulheres. Mas notamos cada vez mais claramente que existe um movimento que vem se fortalecendo em torno da discussão dos direitos das mulheres em todo o mundo, uma luta global pelo reconhecimento institucional dos direitos das mulheres tem se intensificado, e Irlanda e Argentina são, sem dúvida, fontes de esperança para luta brasileira também. Então certamente os debates têm reflexo.
ConJur — Qual a expectativa para a audiência pública? Acredita que terá poder de mobilizar sociedade e os ministros?
Débora Diniz — Sim, já tem tido um poder importante de movimentação do debate jurídico, e a expectativa é que haja também nesse momento da audiência e a partir dela, uma qualificação maior da discussão sobre a questão do aborto, com apresentação de dados corretos e confiáveis, sobre o impacto da criminalização e dados de saúde pública, inclusive de outros países quando descriminalizam o aborto. É preciso destacar que a convocatória da audiência pública da ADPF 442 é um momento de extrema importância, um momento em que o STF, mesmo diante de um contexto de crise política no Brasil, assumiu uma atitude corajosa afirmando que era a hora de debater sobre direito ao aborto na maior corte de Justiça do país. Isso mostra seriedade da corte com debates sensíveis de direitos humanos.
ConJur — Boa parte das entidades que vão se manifestar contra a proposta da ADPF é ligada a igrejas. Que o peso que esse setor tem sobre definição dos limites do aborto no Brasil? E dos direitos de mulheres?
Débora Diniz — Existe uma matriz política, que inclusive tem raízes religiosas, que ainda tem muito poder dentro das instituições no Brasil, e, neste momento em especial, de crise política e uma agravada crise de representatividade, e de crise da atuação política legítima pelos partidos, outras instituições e personagens acabam ocupando um espaço importante na arena política, como é o caso das igrejas e religiões. Isso tem sido especialmente verificado nesse momento de crise, mas é nesse momento também que se verifica um fortalecimento do debate de direitos humanos com uso de evidências confiáveis.
ConJur — Alguns ministros do STF já se manifestaram sobre o tema em outras decisões, como a própria relatora da ADPF, ministra Rosa Weber, os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin. Qual a sua expectativa sobre como o Plenário vai se posicionar nesse caso?
Débora Diniz — A expectativa com relação à ADPF, embora esse não seja ainda o momento da votação, é a de que a corte compreenda também o caminho de coerência da jurisprudência que tem havido desde o julgamento das pesquisas com células tronco, caminhando para o julgamento da anencefalia, casos em que há uma interpretação sólida sobre o que significa a proteção dos direitos fundamentais na questão do aborto. Então a expectativa é que o Plenário siga a posição consolidada em ações anteriores.
ConJur — A ministra Rosa negou um pedido de interrupção de gravidez feito dentro da ADPF. Isso sinaliza algum posicionamento que o tribunal vá tomar no mérito do pedido?
Débora Diniz — Não. É importante entender que naquele momento a ministra Rosa Weber não negou o pedido, mas, por uma questão processual, ela avaliou que não era possível deliberar sobre o pedido naquele momento e dentro do processo da ADPF. Então a decisão foi processual, não houve decisão substantiva sobre o mérito do pedido de Rebeca, por isso essa decisão não nos indica nada em termos de posição nem da ministra, nem do STF.
ConJur — O que significaria, na prática, uma decisão do Supremo pela descriminalização?
Débora Diniz — É preciso entender que um efeito grave da criminalização pode ser visto no casos em que o aborto já deveria ser legal. Existe um obstáculo significativo para que as mulheres encontrem acesso aos serviços, Mesmo na legalidade, elas são atendidas a partir dos estigmas que vêm da criminalização. A consequência disso são serviços escassos, equipes com pouco preparo, o tratamento às mulheres é feito sob permanente suspeição. Os médicos que atuam nesses serviços atuam na exceção, sob uma forte pressão e medo de serem perseguidos. A lista é longa, e, com a descriminalização do aborto, os estigmas associados à sexualidade, saúde e decisões reprodutivas das mulheres serão reduzidos inclusive nos serviços de saúde. Isso implica em mais qualidade nas políticas de saúde e no preparo dos serviços para acolher as necessidades das mulheres.
ConJur — No fim de 2016, a 1ª Turma do STF entendeu, por maioria, que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto. Há que se recorrer a estratégias narrativas para tratar do aborto no Brasil? O marco da 12ª semana foi determinado tendo essa decisão em vista? Naquele momento, o Supremo extrapolou sua competência?
Débora Diniz — O marco da 12ª semana foi determinado por ser um marco temporal de aborto legal seguido internacionalmente. Existem algumas razões para isso: esse é o tempo gestacional em que grande parte das mulheres em todo o mundo fazem aborto — mais de 90% das mulheres nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, fazem aborto até a 13ª semana. Além disso, realizar o aborto dentro desse período é um procedimento muito seguro, com baixo risco de complicações e é também um período muito anterior ao tempo mínimo necessário para que haja viabilidade do feto para vida fora do útero. Naquele momento, o STF não extrapolou sua competência, porque o que foi decidido, na verdade, foi o pedido do Habeas Corpus contra a prisão preventiva das pessoas que estavam sendo acusadas, mas houve também um posicionamento da 1ª Turma com relação a uma questão mais ampla que era uma questão constitucional.
ConJur — Como a punição ao aborto funciona no Brasil? Mulheres são presas?
Débora Diniz — O efeito da lei penal extrapola, e muito, os procedimento de persecução criminal, de prisão e de se tornar ré em processo penal. Mais ainda se considerarmos quem são atingidas por essa criminalização, que são as mulheres mais vulneráveis. Ou seja: mulheres de todas as classes sociais fazem aborto, mas só as meninas mais pobres, negras, indígenas, dependentes do SUS enfrentam o risco real de ser presas.
O mais cruel da lei penal no caso brasileiro é que ela tem um efeito anterior a qualquer movimentação do sistema punitivo. A lei penal já tem um efeito quando as mulheres precisam procurar por conta própria os métodos clandestinos e precisam colocar suas vidas em risco. São efeitos, inclusive, inadmissíveis pelo próprio sistema penal brasileiro. O Brasil faz parte do conjunto de países que veda o tratamento cruel, desumano e degradante, veda a tortura e veda a pena de morte. Mas as mulheres, buscando um método clandestino de aborto, muitas vezes encontram justamente o destino da tortura ou mesmo da morte.
ConJur — A Pesquisa Nacional do Aborto, da Anis, revela que um número alto de mulheres, de diferentes perfis, abortam no país. Por que, então, é uma discussão tão penosa?
Débora Diniz — A PNA revela que aproximadamente 500 mil mulheres abortam por ano no Brasil. Isso significa mais de 1,3 mil por dia, 57 por hora e quase uma mulher por minuto. A pesquisa mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez um aborto no país — ou seja, todos nós, mesmo que não saibamos, conhecemos uma mulher que já fez aborto. Elas são mulheres comuns, têm filhos, têm religião. A discussão se torna tão difícil porque ela não é colocada nos termos corretos sobre o impacto da criminalização na vida e na saúde das mulheres. Ao contrário: é colocada como uma questão de posições morais inconciliáveis que não têm relação, inclusive, com a possibilidade de fazer com que abortos não ocorram. Os números nos mostram que, independentemente da lei penal, uma mulher que precisa interromper uma gestação vai interromper uma gestação. Assim, o único efeito real da criminalização é fazer com que essa mulher faça esse aborto em condições degradantes, perigosas à sua saúde, podendo morrer, podendo deixar sua família desamparada, podendo deixar seus filhos desamparados.
ConJur — Acredita que essa inocuidade da lei terá peso na decisão do Supremo?
Débora Diniz — Sim, esse é um ponto crucial a que a corte precisa estar atenta, compreendendo que, no Brasil, como em vários outros países, o direito penal é a ultima ratio do Estado. Isso significa que a lei penal só pode ser utilizada para a proteção de um bem jurídico quando outras estratégias menos lesivas a direitos fundamentais tenham falhado. Não é o que acontece com o aborto. E a experiência de outros países mostra que existem medidas menos graves, menos violadoras de direitos fundamentais, mais eficazes para prevenir gestações indesejadas e, por consequência, prevenir abortos.
ConJur — Pode citar algumas dessas experiências?
Débora Diniz — Investimento em educação sexual, em políticas integrais de acesso a contraceptivos, de capacitação de profissionais para que recebam as mulheres no serviço de saúde sem estigma, sem julgamento, e assim poder cuidar delas e de suas necessidades.
ConJur — A ADPF 442 é a ação com mais pedidos de ingresso como amicus curiae da história do Supremo. A própria audiência pública recebeu centenas de pedidos de participação. O que isso significa?
Débora Diniz — Isso é um sinal muito importante. Primeiro, que a sociedade civil está mostrando que quer debater esse assunto, que quer se engajar nesse tema a partir de uma ótica de direitos, com suporte em dados confiáveis, em evidências empíricas e na experiência das mulheres. Algo muito importante desse movimento é justamente que a sociedade civil está reconhecendo a corte como um locus democrático para esse debate. Esse é um dos maiores sinais de que o Supremo é também o local onde debates sensíveis sobre direitos podem acontecer, e até o momento são 40 amici curiae, sendo que 29 são favoráveis à procedência da ação e 11 são contrários.
ConJur — A Anis está preparada para o caso de o Supremo declarar constitucional a criminalização do aborto?
Débora Diniz — Sim, a Anis está preparada para qualquer resultado dessa ação. Qualquer que seja o fim desse julgamento, que ainda não tem data para acontecer, vai fazer parte de uma luta maior do movimento de mulheres pelos direitos sexuais e reprodutivos, que não se iniciou na ADPF e nem terminará nela.