Publicado originalmente no perfil do autor
POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor da UnB
A igualdade de oportunidades é o coração do projeto liberal. É o que marca sua oposição às sociedades aristocráticas, em que o acesso a tais ou quais posições era determinado inflexivelmente pela origem familiar.
Pode ser uma igualdade originária, que vale apenas para o momento zero da história humana, na versão de liberais da extremidade direita do espectro político, como Robert Nozick. Pode ser redefinida como uma base mínima disponível a todos, não uma verdadeira igualdade de oportunidades, que é o que sustenta ideias como a educação universal. Pode ser mais exigente e dinâmica, incorporando formas de apoio aos mais vulneráveis, como no liberalismo progressista de um John Rawls.
Em todos os casos, a igualdade de oportunidades é um valor central.
É um avanço? Sem dúvida. Marca um compromisso de base com a ideia da igualdade entre todos os seres humanos (mesmo que tenha sido uma longa luta até que o liberalismo aceitasse as mulheres, a classe trabalhadora e as populações não europeias no seu conceito de “seres humanos”).
Mas a igualdade de oportunidades pode conviver com enormes desigualdades reais. Uma sociedade absolutamente iníqua, em que uns poucos controlem toda a riqueza e o poder e os restantes vivam na privação e na servidão, é um resultado possível de uma situação de oportunidades iguais.
Esta sociedade é justa? Vamos julgar que os que se deram bem estão sendo premiados pelos seus “méritos” – e os que se ferraram, punidos por carecer deles? Quem por algum motivo desperdiçou sua oportunidade fica no sal, é isso?
É correto apontar que o capitalismo não efetiva a igualdade de oportunidades que ele mesmo proclama. Que, em todos os momentos, as origens sociais e o controle da propriedade condicionam as trajetórias possíveis.
Mas o socialismo não pode ser apenas a efetivação do que o capitalismo promete mas não cumpre.
A ideia de igualdade de oportunidades projeta a sociedade como uma corrida: todos devem partir do mesmo lugar e daí cada um avança na velocidade que puder. Mas o socialismo se coloca contra esta visão individualista e competitiva.
Não é uma sociedade em que cada um dá o melhor de si para chegar na frente dos outros. É a busca por uma sociedade em que solidariedade e cooperação se imponham no lugar da competição. Em que cada pessoa desfrute o máximo de autonomia sem, para isso, precisar reduzir a autonomia dos outros. Em que a igualdade seja de acesso à autonomia, não apenas de oportunidades.
Trata-se de revolucionar as relações humanas e construir novos valores societários.
Por isso, é preocupante ver que o candidato mais avançado das eleições presidenciais deste ano repete sempre que “socialismo é igualdade de oportunidades”.
Alguns justificam dizendo que é uma “simplificação” para atingir um maior número de pessoas. Mas não é uma simplificação, é uma concessão ao senso comum, que bloqueia qualquer avanço na discussão central: qual é a sociedade que queremos?
A adesão ao senso comum pode produzir vantagens imediatas, mas cobra seu preço a médio e longo prazos.
Guilherme Boulos é, todos sabemos, um candidato cujo papel não é ganhar as eleições, mas ajudar a colocar em marcha um projeto de reconstrução da esquerda no Brasil. Ele pode almejar fazer 2, 2,5% dos votos, não mais do que isso. O sucesso de sua campanha, a meu ver, não reside na votação alcançada, mas na sua capacidade de qualificar o debate político.
A baixa competitividade eleitoral é – vejam só – uma “oportunidade”. Quando maiores as chances de vitória, maiores os incentivos para que sejam feitas concessões no discurso, no programa, nas alianças. A trajetória do PT é exemplo suficiente.
Nesta campanha, Boulos tem apresentado em geral um discurso, a meu ver, muito bom. É firme, é claro. Sua insistência em dizer o que deveria ser o óbvio – o grande problema do Brasil é a desigualdade – já marca um diferencial na campanha.
É uma pena que permaneça com esta definição tão limitada e equivocada do socialismo, que, no fim das contas, reafirma a “verdade” ideológica de que nenhuma sociedade radicalmente diferente da atual será possível.