POR RENAN ANTUNES DE OLIVEIRA*
Ele morreu.
No primeiro momento, senti pelas filhas que perderam o pai.
No segundo, li a avalanche de elogios ao “empresário progressista”, “democrata”, “campeão da liberdade de expressão”.
Um dos Marinhos foi ao enterro e saiu no JN.
Na Folha de quinta, ele foi elogiado até pelo presidente mundial da associação de patrões.
Urbi et Orbi.
Foi neste momento que senti falta dos sindicalistas brasileiros – não vale um debochado da Força Sindical que mandou pêsames só pra pegar algumas linhas de notoriedade.
Nenhuma palavra dos adversários da pesada.
Liguei para velhos sindicalistas do meu tempo de diretor da Fenaj, anos 80 e 90.
Perguntei aos caquéticos: ninguém vai dizer nada de tão importante passamento?
Silêncio total.
Uns em respeito ao falecido, outros talvez temendo os canhões da empresa.
Eu não quero ser desrespeitoso porque ele não tá mais aqui, mas bati de leve com Otavinho no final de 1986.
Foi como bater num iceberg.
Atesto que no quesito “liberdade de expressão” ele não era tão liberto como dizem.
Por ele, sindicatos não deveriam existir. Que dirá se expressar – esta ele não precisaria estar vivo para responder, por isso conto a história.
Andava tudo bem na Folha, em Floripa, onde eu era o correspondente naqueles tempos.
Eu já tinha a chave da sucursal.
Só faltava assinar carteira.
Um dia, chega um emissário de Otavinho pra me entrevistar.
Eu já tinha ultrapassado aqueles 90 dias clássicos.
O RH só queria regularizar a situação para evitar problemas trabalhistas.
O nome do emissário ficará de fora: era grande na FSP, saiu para ser assessor de Celso Pitta.
O homem me congratulou: eu poderia entrar no paraíso onde Otavinho estava reinventando o jornalismo e blá blá blá.
Ele disse que eu já tinha agradado o pessoal de Sampa, tava na fita pra ser contratado.
Eu fiquei todo pimpão.
A suprema glória: Otavinho falaria comigo ao telefone.
Epa! É preciso ?
É que…havia um problema.
Qual é ?
“Você é dirigente sindical, o Otavinho não quer sindicalistas na Folha”.
Eu era diretor do modestíssimo Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina.
Tentei minimizar minha importância: “Sou suplente, só entrarei em ação quando não tiver mais nenhum dirigente vivo”.
O assessor não achou engraçado.
“O Otavinho não quer, você terá que renunciar”, insistiu.
Fui durão: “Ah, não posso renunciar, como eu ficarei perante os que me elegeram?”
Otavinho foi chamado ao telefone para dar a palavra final.
De fato, ele foi comigo o homem gentil que todos atestam.
Passado os fru frus, que já esqueci, veio a sentença, inesquecível:
“Se você não renunciar, não será repórter da Folha”.
Aí, gentilmente, me pediu pra passar o fone pro assessor.
Me contive e revirei minha cachola, em segundos: “Já estou aqui além daquele prazo legal de 90 dias, já tenho imunidade, não posso ser demitido, mas terei que começar uma batalha legal para me segurar no emprego”.
Naquele tempo ainda se temia muito a reação do patronato e suas listas negras. Se você brigasse com um todos se uniam e te fechavam as portas.
Me enfureci. Pensei em dizer um desaforo, mas o fone já estava na mão do assessor.
Os dois desligaram o telefone.
Agora era só eu e o sabujo.
Perguntei se não era apenas uma desculpa fria pra me chutar.
Ele jurou que era só irmos até o sindicato, assinar a renúncia e assinar a carteira.
Ainda supliquei: “E se eu me recusar?”
Tu tá fora, rosnou.
Aí eu peguei a chave da sucursal e declarei solenemente: “Enfia no…”
Anos depois, no início dos 90, como diretor da Fenaj, tive vários embates com os esbirros da FSP encarregados de negociações salariais.
Digo esbirros porque negociar na Folha sempre foi uma guerra.
Por alguma razão que só os patrões entendem, Otavinho odiava sindicatos.
Ele não aceitava diálogo com as lideranças da “catigoria”– bem distante do que se esperava de um feroz defensor da liberdade de expressão.
Ele foi o campeão dos empresários na luta contra a regulamentação da profissão.
Ele fazia questão de quebrar a lei e contratar gente sem diploma no tempo em que diplomas eram exigidos por lei.
Nunca nos deu trégua. Proibiu sindicatos e Fenaj de pisarem na Folha.
Ele nunca me recebeu, nem numa condição temporária (à época, óbvio) de diretor nacional de negociações para criação do Piso Salarial Único.
Muitos coleguinhas da FSP viravam a cara pro sindi, bem ao gosto do patrão.
Eu fui ficando mais velho (farei 69 em dezembro) e os tempos mudaram, mas Otavinho continuou o mesmo.
Ele ajudou muito ao patronato na briga (decidida no STF, esta casa de leis da qual todos nos orgulhamos) que deu aos jornalistas o status de qualquer coisa.
Rolei por aí duas décadas. Outros dirigentes sindicais se ocuparam do combate ao patronato, sem nunca conseguir arranhar a couraça dele.
Passei um tempo no UOL, fora do radar do Otavinho, sem carteira assinada.
No ano passado também tive um câncer no pâncreas.
Cortei um pedaço, perdi baço e rins, mas tive mais sorte do que ele e sobrevivi.
No início do ano que vem vou fazer um transplante.
Se tiver saúde, voltarei às lides sindicais.
Vou voltar porque aprendi no lombo: precisamos de um sindicato pra brigar por nós.
Pra quanto mais duros forem os tempos.
Pra quanto mais intransigente for o patrão.
RIP Otavinho
(* Renan Antunes de Oliveira foi diretor da Fenaj nos anos 80 e do SJSC até 2017)