Como se fosse um ministro do Supremo Tribunal Federal, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, opinou sobre a candidatura de Lula a presidente, em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estadão.
“A lei da ficha limpa vale para todos”, disse.
A manifestação do general é indevida por várias razões, inclusive à luz do que determina o decreto 4346, de 2002, assinado na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
O decreto estabelece penas que vão da advertência até a exclusão das organização militares a quem:
1 – Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
2 – Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
3 – Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.
Foi o que fez o general, sem autorização para tanto. Alguns podem afirmar que, sendo ele comandante do Exército, não precisaria de autorização, já que está no topo da hierarquia militar.
Errado.
Acima dele, se encontra o presidente da república, definido pela Constituição como comandante em chefe das forças armadas.
Michel Temer recebeu das mãos do general Villas Bôas, em fevereiro do ano passado, o bastão que simboliza o comando da tropa.
Mas, nas mãos dele, esse bastão se transformou apenas num pedaço de pau.
Não fosse assim, Villas Bôas não se sentiria à vontade para fazer declarações que se caracterizam como ameaça ao pode civil.
E, nesse ponto, é reincidente.
Na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, em abril, já havia postado no Twitter a declaração de que estava de olho na decisão que sairia do tribunal.
“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. escreveu.
Villas Bôas foi além do que, constitucionalmente, lhe é permitido fazer, mas não se pode dizer que seja uma voz isolada nas forças armadas e segue uma anomalia que se tornou tradição no Exército: se imiscuir em assuntos de natureza política.
Sem voto popular, muitos deles cedem à tentação de tentar tutelar o poder civil — comportamento que se verificou antes e depois da ditadura militar.
Fernando Henrique Cardoso narra em suas memórias (volume 3 dos Diários da Presidência) os bastidores de uma conspiração militar em fevereiro de 1994 para derrubar Itamar Franco.
Na época, Fernando Henrique era ministro da Fazenda.
“Depois do episódio da Lilian Ramos, fui procurado pelo general Romildo Can (ministro da Secretaria de Administração na época), que me disse o seguinte: que os chefes militares, ministros, generais, estavam reunidos e queriam saber de mim se, havendo a possibilidade de substituição de Itamar pelo Congresso, e eles pensavam possivelmente no Jarbas Passarinho, se eu continuaria ministro da Fazenda. Eu disse ao Canhim que não, quem nem um dia”.
A responsabilidade pela desenvoltura com que os militares agem à sobra do poder constitucional é do próprio poder civil.
Ao revelar o episódio da conspiração contra Itamar, Fernando Henrique Cardoso dá testemunho da deslealdade da cúpula militar e, nos oito anos em que governou o Brasil, o máximo que fez para neutralizar esse poder foi a criação do Ministério da Defesa.
Um passo importante, já que, desde o início, a ideia era colocar um civil para determinar as diretrizes das forças armadas, mas nada que se compare ao que fizeram outros países da América do Sul que tiveram a experiência de um governo militar.
Na Argentina, generais foram presos, no Uruguai um deles se matou quando foi confrontado com a denúncia de que havia participado de tortura.
E até no Chile, local da experiência mais violenta de governo militar, houve algum esforço para não deixar impunes os desvios dos militares.
Não houve punição aos assassinatos e tortura, mas Augusto Pinochet foi investigado por corrupção e, mesmo depois de sua morte, o Estado decidiu reaver o que é possível dos desvios de recursos praticado pelo antigo ditador.
Seus herdeiros, hoje muito ricos, perderão parte do patrimônio.
No Brasil, o paralelo mais próximo é o do Paraguai, não por acaso o país onde a democracia é tão frágil quanto a brasileira.
Lá, tanto quanto no Brasil, reina a impunidade em relação aos crimes praticados pelos militares.
Villas Bôas é parte de uma corporação que reage com truculência ao menor gesto do poder civil de punição pelos desvios cometidos.
Generais que agem como se não devessem satisfação a ninguém.
Se houvesse um presidente mais firme, não com a impopularidade de Temer, talvez se comportassem com mais discrição.
Mas, nem assim, deixariam de conspirar.
É da tradição deles, para a desgraça do Brasil, mas, em governos populares, quando encontram resistência, cedem.
Infelizmente, na barafunda em que foi colocado o Brasil depois do impeachment sem crime de responsabilidade, os homens de farda se sentiram mais à vontade para fazer à luz do sol o que faziam nas sombras.
A próxima eleição é a oportunidade para tirar o Brasil dessa escuridão e impor limites a quem, sem voto e, portanto, sem legitimidade, tenta tutelar o poder que emana do povo, único poder legítimo.
O resto é usurpação.