O general, a tortura e o golpe, num programa de TV que foi a síntese de um Brasil que precisa de luz. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 17 de setembro de 2018 às 12:57

Estarrecedora.

Foi a manifestação do general Luiz Eduardo Rocha Paiva durante um programa da Globonews, na sexta-feira (vídeo abaixo).

Os pontos que ele defende:

– Os militares podem intervir nos poderes da república independentemente de ser acionado pelo Executivo, Legislativo ou Judiciário.

  – Devemos ter uma nova Constituição, mas a palavra final deve caber a uma comissão de notáveis (a  comissão prepara o texto, vai para o Congresso, que discute, e volta para a comissão. Foi o que ele disse).

– O relatório da Comissão da Verdade não tem credibilidade alguma, porque só investigou os abusos cometidos pelas forças armadas.

O general passeava tranquilamente com seu discurso obscurantista quando o advogado José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça, fez uma observação, um pouco tímida diante da gravidade do que era dito:

“Me desculpa, general, mas é muito perigoso o que o senhor está dizendo”.

O general manteve sua posição:

“Vai fazer o quê? Vai esperar o esfacelamento da nação? (…) Você vê hoje que o STF é dividido por dentro.”

Como se não houvesse divergência também na Suprema Corte dos Estados Unidos…

O tema do debate era o papel das forças armadas na democracia, e se discutia o auto golpe admitido pelo general Hamilton Mourão, candidato a vice na chapa de Bolsonaro.

O professor Wanderley Messias da Costa, da USP, tentou dissociar Mourão da opinião majoritária no Exército:

“O general é um ponto fora da curva, nesse aspeto. Por uma razão, ou por falta de leitura, ou por falta de debate, ou por alguma coisa da cultura política dele, não permite que ele avalie a complexidade que é o Brasil hoje, que não comporta esse tipo de análise simplória, eu diria que, até de certo modo, oportunista”, disse o professor.

O general discurdou.

“Não, é uma pessoa muito preparada (…). É uma pessoa de índole democrática”, afirmou.

José Carlos Dias lembrou que participou da Comissão Nacional da Verdade durante dois anos e meio e visitou muitos locais onde houve tortura e tomou depoimentos impressionantes.

“Foram revelações de violências praticadas. Acho que devemos dar um basta para que não voltemos a viver isso”, afirmou, diante do olhar direto do general.

Dias prosseguiu, em referência a uma declaração do vice de Bolsonaro:

“Me preocupa quando eu vejo saindo dos lábios de um militar de alto nível a afirmação de que o major Ustra foi um herói. Isso é gravíssimo. O Ustra foi indiscutivelmente o maior torturador, pelo que eu apurei, e eu advoguei muito na defesa de preso politico, foi o maior torturador que eu ouvi falar deste país”, disse Dias.

O general parecia disposto a não deixar nada sem resposta e apontou o que ele considera falhas no relatório da comissão. Pelo decreto que a criou, deveriam ter sido apurados violações de direitos humanos entre 1946 e 1988. Mas só houve aprofundamento dos casos da ditadura militar. Foi quando disse que o relatório não tinha credibilidade.

“É a sua opinião, general”, disse o advogado, que lembrou que as violações ocorridas em setores da luta armada foram punidas..

“Minha e de muita gente”, rebateu, a respeito da sua opinião.

Dias descreveu o conteúdo de um dos depoimentos, em que um major descreve como os torturadores agiam — arrancavam unhas e dentes, e queimavam os corpos ou jogavam no mar.

O general não se constrangeu.

“Todos os que combateram a luta armada, eles são muito bem considerados no Exército. Alguns violaram os direitos humanos? Sim, mas também os que estavam do outro lado violaram”, disse.

Rocha Paiva, como fez questão de frisar, não expressa um pensamento pessoal. Ela está presente no Exército, e o mais grave é que ela não se limita a uma interpretação sobre o que ocorreu no passado.

Está ativa e de olho no resultado das próximas eleições, como o general da reserva observou ao responder a uma colocação da apresentadora do programa sobre como seria a reação das forças armadas diante de um cenário de segundo turno, em que se enfrentariam Bolsonaro e Haddad.

“Uma coisa é o Haddad aqui em cima, o Lula aqui em cima. Mas quem dá a linha ideológica, perigosíssima, do PT está aqui embaixo. É José Dirceu, era o Marco Aurélio Garcia, o Pomar, porque eles estão implantando no país uma revolução silenciosa, que é a revolução gramscista, ocupando todos os espaços. O fato de o PT não estar no poder não significa que tenha perdido poder. O perigo para mim é: O Haddad vai estar aqui em cima, é paz e amor, mas aqui embaixo eles vão estar mobiliando e realizando a revolução gramscista”, afirmou.

Depois de treze anos no governo, o PT deu provas de que fez exatamente o contrário do que afirma o general.

O exemplo mais siginficativo: Nomeou um grande número de magistrados nas cortes superiores, seguindo prerrogativa constitucional.

Manteve o rodízio, e atendeu ao critério republicano para nomear o procurador geral. Foi sempre o primeiro da lista, ao contrário do que fizeram Temer agora e Fernando Henrique Cardoso nos seus oito anos de governo.

Para muitos, o PT foi de um republicanismo suicida, pois, quando houve o movimento para tirar Dilma sem crime de responsabilidade, o Judiciário não impediu.

E na prisão de Lula, fruto de uma condenação sem provas, o princípio da presunção de inocência foi violentado, e o STF não quis sequer julgar uma ação proposta pela OAB, relatada por Marco Aurélio Mello, para restabelecer a constitucionalidade do artigo do Código de Processo Penal que garante a liberdade dos brasileiros até o trânsito em julgado das sentenças.

Nesses casos, não se espera favorecimento ao PT, mas a observação de regras constitucionais. Nem isso o PT conseguiu, o que mostra que ele não tinha poder nem quando era governo.

O general diz palavras que parecem saídas da boca de um discípulo de Olavo de Carvalho.Com suas declarações sobre constituição escrita por notáveis, auto golpe e a tortura, Paiva Rocha indica caminho oposto ao da soberania do voto popular.

É preocupante, perigoso, como disse José Carlos Dias, ele mesmo preso um dia durante a ditadura, pela acusação de que era um advogado que defendia os direitos humanos.

Um absurdo completo, que parece voltar à cena agora, nestes dias de golpe em curso.

O que disse o general na Globonews é assustador. Tão assustador que, enquanto ele falava, chamava a atenção o cenário do programa — uma coincidência, claro —, escuro, com luzes amareladas em foco, como se fosse um local de interrogatório.

Desde que as instituições brasileiras aceitaram atalhos para o poder, com a formação do condomínio entre Temer e o PSDB que retirou Dilma do Planalto, o Brasil está neste lusco-fusco parecido com o do cenário do programa da Globonews.

Luz, o Brasil precisa de luz.