Publicado originalmente no blog Tutaméia
Publicado originalmente Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena
“Dar um passo na direção da intervenção militar ou promover um golpe de Estado na Venezuela será uma catástrofe civil, uma guerra civil, um fator de desestabilização inequívoco em toda a região.” O alerta é do ex-primeiro-ministro espanhol, José Luís Zapatero em entrevista ao TUTAMÉIA em São Paulo.
“Eu vivi muito diretamente a Guerra do Iraque. Eu me recordo da brutal campanha que houve. Eles teriam armas de destruição em massa. Isso para justificar a intervenção. Agora estou me recordando de todo o conceito de “tirania” na Venezuela e da crise humanitária, crise de imigração, tudo está se somando para a justificação de algo. Estou muito preocupado”, diz. Para ele, uma intervenção militar no país pode ser tão desastrosa como foi a guerra no Iraque.
Ex-secretário-geral do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), Zapatero governou a Espanha de 2004 a 2011. Sua declaração, no último dia 15 de setembro, vem em resposta ao secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, que, na véspera, não descartou a intervenção militar para derrubar Nicolás Maduro. A fala de Almagro provocou reação contrária de países latino-americanos, Brasil incluído. Ela segue a tendência de avanço no cerco ao país. Donald Trump já havia colocado publicamente essa possibilidade, e os EUA se reuniram com oposicionistas venezuelanos para tramar um golpe, conforme revelou o “The New York Times” no início de setembro.
Zapatero afirma que a Venezuela vive forte crise econômica, provocada, em parte, por ações do governo e, em outra, pelas fortes sanções definidas conta o país, que prejudicam a população. “Há confrontação política, uma situação de grande tensão. Mas isso justifica uma guerra, uma intervenção?”.
DIREITA DOS EUA ACHA QUE PODE DISPOR DA AMÉRICA LATINA
Nos últimos três anos, Zapatero conta que viajou 34 vezes de Madri a Caracas, numa tarefa de diálogo, que ele define como de busca de uma “paz preventiva”. Fala que, apesar de alertas, vinha resistindo a pensar na possibilidade de planos miliares de intervenção. Preferia pensar que golpes induzidos na América Latina estavam no passado. Agora, com declarações abertas nesse sentido, diz estar preocupado.
“A Venezuela é uma grande obsessão coletiva de muitos atores internacionais. Sou incapaz de entender a razão. Como todo mundo se permite qualificar ou desqualificar o governo, fazer uma ingerência contínua, dizer o que tem e o que não tem que fazer, pedir sanções. Uma intervenção militar ou um golpe induzido é uma guerra civil”.
Petróleo, ouro, diamantes estariam nas motivações dessa obsessão? Zapatero diz que essas riquezas têm algo a ver com o quadro. Ele fala das fortes posições de Hugo Chávez e Nicolás Maduro contra o imperialismo dos EUA. Diz que isso tem reflexo na direita mais dura norte-americana, que escolheu a Venezuela como um dos seus principais adversários em relação ao que consideram sua “missão” e seus planos para a região latino-americana.
“Há muitos políticos norte-americanos, da direita especialmente, que creem que podem dispor deste continente, que têm direito, que é natural. Que eles que são uma grande potência e que os outros têm que fazer o que eles dizem. É como algo de direito divino”, declara Zapatero.
BRASIL E MÉXICO PODEM FORMAR NOVO EIXO DE ESQUERDAS
Ele destaca a importância da vitória da esquerda no México, com López Obrador. “Se o Brasil, depois do México, vai para a esquerda, vai mudar tudo. Não só na região. Porque haverá dois grandes países juntos, que são quase o dobro da Rússia em habitantes. Se esses dois grandes países têm presidentes com força política, isso vai mudar tudo”.
E acrescenta o fato de a Espanha e Portugal terem governo de esquerdas. “Com forças progressistas, Europa e América Latina devem fazer um novo eixo, com os governos de esquerdas, para que o quadro universal mude”.
BRASIL ESTÁ NUM PARÊNTESIS POLÍTICO
Zapatero esteve em São Paulo para participar do seminário internacional “Ameaças à democracia e a ordem multipolar”, promovido pela Fundação Perseu Abramo. Na sua visão, “o Brasil está numa espécie de parêntesis político. Parêntesis que se arrasta desde um surpreendente impeachment. E pelo também surpreendente encarceramento de Lula”.
Ao TUTAMÉIA, o ex-primeiro-ministro espanhol relata que conviveu com Lula no cenário internacional durante quase oito anos e destaca três pontos nas ações do ex-presidente brasileiro:
“1. Lula promoveu uma mudança na comunidade internacional na luta contra a pobreza e a miséria. 2. Ele acelerou a sensibilidade sobre as mudanças climáticas. 3. Lula é a alma dos Brics, um novo ator num mundo multilateral ainda por construir”.
Para Zapatero, com Lula, “o Brasil chegou à plenitude como um grande ator internacional. Esperamos que as eleições sejam o fim do parêntesis e o reencontro do Brasil com a comunidade internacional. Confio no ato de inteligência política, de atitude democrática de Lula e do PT para abrir espaço para o novo candidato [Fernando Haddad], para o fortalecimento da democracia”.
Ele afirma que “o impeachment surpreendeu ao mundo democrático, gerou uma perplexidade porque os motivos que se puseram em cima da mesa não respondem às regras dos países que conhecemos como comunidade democrática”. Acrescenta que o país ficou mais débil ao ser governado por um presidente não eleito.
“Por isso a minha ideia de que o Brasil está num parêntesis na comunidade internacional. A comunidade internacional está esperando de novo o Brasil, que é um país fundamental, o mais importante da ibero-américa. É o pais de referência dos emergentes não asiáticos. Tem uma capacidade de ser triangulo, vértice de um diálogo entre ocidente e oriente”.
CRISE DE 2008 AINDA NÃO FOI DECANTADA
A entrevista com Zapatero ocorre no exato dia em que, dez anos atrás, a falência do Lehman Brothers desencadeou a crise mundial do capitalismo, promovendo pobreza e concentração de riqueza. Analisa ele:
“Há um fato inquestionável. A crise financeira de 2008 provocou um movimento telúrico, um cismo político e econômico. As democracias foram sacudidas. Sempre existem os que não gostam da democracia. Uma parte dos cidadãos se sente rebaixada, porque, com a crise, tiveram menos trabalho, menos auxílios sociais. Eles se aproveitam disso de uma maneira muito decidida. Tudo isso ainda não foi bem decantado. A crise já dura dez anos, mas a terra ainda não se assentou. Como num terremoto, ainda estamos nas réplicas do grande terremoto que ocorreu no sistema econômico e político mundial em 2008”.
SOBERANIA DE PAPEL
Apesar das incertezas, Zapatero defende que a comunidade internacional deva “buscar mais integração e união na regulamentação dos mercados, na luta contra o aquecimento global, na luta contra a pobreza”. Todavia, ele teme que haverá “um tempo de inquietude até as próximas eleições nos EUA”.
Perguntamos sobre o avanço de grupos de ultradireita na Europa, especialmente após a crise de 2008. Zapatero:
“Na política, s consequências da crise provocaram a emergência, em alguns países, de forças xenófobas, lamentavelmente com um discurso político contra a imigração. Um discurso que usa desesperança, a debilidade, a pobreza dos seres humanos. Eu me preocupo com a Itália. Acho que os britânicos se arrependeram do Brexit. É uma reação torpe a um mal-estar difuso”.
E acrescenta: “Se algo sabemos, é que os processos de integração, de união, de fortalecimento de uniões regionais são imprescindíveis. Porque os movimentos de capital são globais. Como são os movimentos comerciais, a difusão da comunicação, as migrações. Portanto, tem que haver uma política global que se possa construir, onde as instituições internacionais assumam mais poder. É preciso que os Estados assumam que têm que exercer mais poder. Senão sua soberania será uma soberania de papel”.
E a Espanha?
“Afortunadamente não surgiu um movimento de direita como em outros lugares. Isso indica que Espanha é bastante progressista. Estamos nos recuperando da crise econômica, que provocou uma precariedade no trabalho, especialmente para os jovens. Necessitamos fazer mudanças que garantam mais emprego e recuperarem o valor do trabalho”.
Na entrevista, ele defende um diálogo do governo (comandado pelo PSOE) com as forças independentistas da Catalunha.