Publicado originalmente no Publico.pt
POR CAMILO SOLDADO
Aos 77 anos, Boaventura de Sousa Santos continua a dividir o tempo entre Portugal, onde dirige o Centro de Estudos Sociais (CES), e os Estados Unidos, onde lecciona na Universidade de Wisconsin-Madison. Pelo meio, o sociólogo e jurista é um observador atento da América Latina, tendo participado na elaboração das constituições do Equador e Bolívia. É dos académicos portugueses de maior projecção internacional e mantém-se atento aos desenvolvimentos no Brasil, onde a eleição de Jair Bolsonaro representa mais um episódio no “ciclo reacionário global”. Falou ao P2 no seu gabinete no CES, em Coimbra, organização que ajudou a fundar e que assinala esta semana 40 anos.
Sobre Bolsonaro disse que “é mau, grotesco, grosseiro, sexista e racista”. E, agora, Presidente do Brasil. Como vê os próximos quatro anos?
Com muita preocupação. Muito do discurso e da retórica usada nos momentos de campanha, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, é extremamente violenta, agressiva e que tem uma característica nova, antidemocrática. Nestes casos, há uma recusa em discutir as ideias dos adversários. Como disse Bolsonaro na campanha, “os meus rivais políticos só têm dois caminhos: ou a prisão ou o exílio”. Bem, isto é o fim da democracia. Mas isto é o que se diz em campanha. O que é que se vai realizar depois é diferente. O próprio Trump manteve o seu discurso, mas teve de se articular com o sistema político que está no terreno. No Brasil, o problema é saber qual vai ser o sistema político com que ele vai ser recebido. Vai ser Presidente num Congresso onde 75% da câmara dos deputados é conservadora.
Ainda assim de vários partidos.
O partido de Bolsonaro é a segunda maior bancada, a seguir ao Partido dos Trabalhadores. Mas, no conjunto, são mais os partidos conservadores. Dentro deles há partidos de extrema-direita, que hoje têm alguma representação. Pelo menos na câmara dos deputados ele vai ter um Congresso consonante com as políticas que promete pôr em vigor. A preocupação é a de saber como é que esta consonância entre um Presidente que é obviamente de extrema-direita e um Congresso muito conservador vai enfrentar uma sociedade em que 47 milhões de pessoas votaram em Fernando Haddad e em que 30% não quis a polarização — não votou, votou nulo ou branco. É muita gente. Este Presidente não só elevou o nível de medo daqueles que são seus opositores, mas criou expectativas altíssimas entre aqueles que são seus apoiantes. É uma lógica militar que volta ao poder pela via democrática. A transição [para a democracia] foi muito controlada pelos militares e eles têm não só uma visão política diferente da população civil e dos partidos, mas uma ideia de superioridade moral. Esta superioridade moral vai ser transferida para dentro do governo, com ministros militares.
Essa ideia é perigosa?
É, porque toda a diferença é estigmatizada. Se eu me considero superior moralmente e penso que uma família é um homem e uma mulher, tenho toda a justificação para liquidar os homossexuais. É uma lógica repressiva. O Brasil, ao contrário de outros países da América Latina, tem uma sociedade civil bastante organizada, com muitos movimentos sociais. É evidente que vai haver resistência. Há uma sociedade civil que não está desarmada social e politicamente. Nas últimas semanas houve uma mobilização extraordinária, que não foi suficiente, mas mostra um apego à democracia que o Latinobarómetro não previa. Como é que vai ser enfrentada? Pela concertação ou pela repressão? Se acreditarmos no discurso do Bolsonaro, será pela repressão.
Tendo em conta essas preocupações, a eleição de Jair Bolsonaro significa mais um passo na erosão da democracia ou a evolução para uma ditadura a curto prazo?
É difícil de prever. Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado. Está a preocupar-me uma confusão cada vez maior entre os conceitos de “ditadura” e de “democracia”. Estamos a entrar em regimes híbridos. Têm elementos de democracia, na medida em que há partidos, e continua a haver uma disputa eleitoral. Mas são democracias truncadas ou de baixíssima intensidade. Por exemplo, os militares, neste momento, falam da nova democracia, que é uma democracia sem o PT, sem a esquerda. Isto não é novo. Tivemos isso na Europa, depois da II Guerra Mundial, na parte Ocidental, a partir de 1945, na Itália e depois na Grécia. Os comunistas tinham a maioria devido à sua luta contra o nazismo e houve uma política de contenção desses partidos.
Falava da composição do Congresso. Mecanismos como o Supremo Tribunal Federal ou a imprensa são suficientes para combater esse ímpeto autoritário? Por exemplo, nos EUA, fala-se no sistema de checks and balances.
Um meu colega de Harvard, Steve Levitsky, acaba de publicar um livro fabuloso, How Democracies Die. Basicamente é [sobre] o fim do checks and balances que está a acontecer. A partir da nomeação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal dos EUA, temos uma maioria conservadora. Vão começar a surgir as decisões contra o aborto. Um retrocesso. Os checks and balances estão a ser postos em causa devido à retórica e trabalho de Donald Trump. É um problema mundial. Estamos a passar por um ciclo reaccionário global. Não é apenas o Brasil, também na Europa e noutros países da América Latina. A minha esperança é que esses sistemas de controlo sejam accionados. Podemos pensar nos meios de comunicação. É curioso que Bolsonaro diga da Globo e da Folha de S. Paulo o que Trump diz da CNN, do New York Times e do Washington Post. A lógica é a mesma, porque [o ex-conselheiro principal de Donald Trump] Steven Bannon lá vai dando as mesmas dicas do que se deve dizer. Quanto à imprensa, vamos ver: 120 milhões de utilizadores do Whatsapp têm como única fonte de informação o Facebook e o Whatsapp. Isto significa uma capacidade tóxica muito grande. Por outro lado, quanto aos tribunais, a minha preocupação também é grande. Vejo que foi a fraqueza dos checks and balances que levou Bolsonaro ao poder. Isto é, toda a operação Lava-Jato e atropelos à legalidade que se cometeram nesta investigação fizeram com que ela não fosse apenas uma luta contra a corrupção — que é perfeitamente legítima — mas uma luta de desestruturação do sistema político. Já tínhamos assistido a isso nos anos 1990, em Itália, e deu no [Sílvio] Berlusconi. Aqui deu no Bolsonaro. A direita ganharia tranquilamente as eleições de 2018 se deixasse estar Dilma Rousseff no poder. Não haveria destruição do sistema.
Disse já que um dos problemas do governo de Lula e do PT foi não ter promovido uma efectiva redistribuição de riqueza, mas antes canalizou o excedente.
Fui solidário, mas muito crítico em relação aos governos do PT exactamente por isso. Foi uma oportunidade histórica que se perdeu, porque tinha uma grande aceitação popular e podia ter feito uma reforma do sistema politico. Conseguiu-se reduzir o financiamento das campanhas eleitorais pelos empresários, que já não foi mau de todo. Havia realmente possibilidades. Por exemplo, quando se dá o grande boom da China, ninguém pensa que em 2009-2010 ia cessar.
Disse que o julgamento de Lula tinha sido politicamente instrumentalizado para evitar a sua candidatura. Com a eleição de Bolsonaro, qual espera que seja o desfecho?
Tenho um grande apreço pelo primado do direito e pelo respeito da legalidade nas democracias. No caso do presidente Lula, acho que não foram respeitadas. Se estivesse solto, tinha ganho as eleições, o que significava que o golpe tinha sido um fracasso. O grande erro que o PT cometeu [na campanha eleitoral] foi só ter visto o lado bom da história. Mesmo na prisão, Lula era o candidato mais popular. Mas o segundo candidato mais popular era aquele que tinha o ódio mais visceral e mais primário ao PT, que subestimou a demonização do petismo. Foi um erro absolutamente histórico. Visitei o presidente Lula na prisão, li as sentenças e não há nenhuma argumentação jurídica que justifique aquela decisão. Por outro lado, temos de construir uma política democrática no futuro que não pode repetir os erros do passado. Isto é, o “lulismo” não pode voltar. Mas a figura do presidente Lula não pode ser condenada historicamente e morrer na prisão. Será de uma injustiça histórica enorme em relação a um homem que, com todos os erros que cometeu, conseguiu tirar 50 milhões de pessoas da miséria e da fome. Por outro lado, se as outras forças se concentrarem exclusivamente no slogan “Lula livre”, que eu próprio tenho defendido bastante, é uma luta em relação ao passado.
Não apresenta uma alternativa de futuro.
E, bem ou mal, esta política foi rejeitada. Penso que é um novo capítulo que está a inaugurar-se. Neste momento há Fernando Haddad, um homem honesto, muito moderado.
Mas falta-lhe o carisma de Lula.
Não sou grande adepto de carismas. O Hugo Chávez também tinha um grande carisma. O problema do carisma é que se cria uma grande desertificação à sua volta, depois só há o líder. Agora é preciso reconstruir. Prevejo que possa haver um novo partido de esquerda, um partido-movimento, a partir dos movimentos sociais, que mostraram o que houve de melhor nesta candidatura. A grande liderança [que surgiu], no meu entender, foi o Guilherme Boulos, do PSOL.
O Brasil vai ter de jogar uma coisa muito difícil em democracia, que é manter a memória. Perderam a memória da ditadura. Agora podem correr o risco de perder a memória dos anos de alguma inclusão social. Obviamente por causa da corrupção — e eu fui crítico na altura própria do modo como se estava a fazer a governação. A esquerda devia ter tolerância zero para com a corrupção, mas não foi essa a linha seguida. O futuro é esta ideia de que todas as esquerdas têm de se unir, mas não devem privilegiar uniões com a direita. A direita brasileira mostrou que só é democrática quando se pode servir da democracia para manter os seus privilégios.
Visitou Lula na prisão no final de Agosto. Sobre o que falaram?
A minha visita foi de meia hora, antes do Martin Schulz. Entro no edifício da Polícia Federal, que foi inaugurado pelo Presidente Lula há 11 anos. Está lá uma grande placa. Sou levado para a cela, por um jovem polícia federal, cujos quadros superiores têm formação universitária. No caminho, diz-me: “Professor, eu sou um devorador dos seus livros.” Fico com um sorriso amarelo e digo que os meus livros não dão para justificar a prisão do presidente Lula. Ele diz-me: “Pois é, professor, mas eu tenho de obedecer a ordens.” A cela é solitária, bastante arejada e grande, com uma passadeira para fazer ginástica, televisão, etc. Já o conhecia. Ele perguntou-me sobre a conjuntura da América Latina. Dei-lhe a minha perspectiva, de que o continente estava a mudar de uma certa esquerda — problemática, é certo — para uma direita. Depois perguntei-lhe porque não liberava o seu sucessor. Eu fui adepto de que ele liberasse Haddad o quanto antes. Achava que uma coisa é o afecto que o povo tem a Lula. Mas a adesão a Lula não era uma adesão às pessoas indicadas por Lula. Depois, o presidente Lula disse-me que está inocente e que vai lutar toda a vida para provar a sua inocência.
Sobre Bolsonaro, preocupa-o mais a atitude autoritária ou a política económica?
A política económica. No fundo, é isto: o ciclo reaccionário global é o capital financeiro, que não precisa de gente, que cria riqueza a partir do dinheiro e não da produção industrial. O Brasil desindustrializou-se muito nestes últimos anos. O capital financeiro vai ser o Paulo Guedes. É um homem que esteve com a política económica do Pinochet, é dos Chicago Boys [grupo de economistas chilenos que estudaram nos EUA nos anos 70 e 80] e que conhece muito bem a política neoliberal. Começa agora um capitalismo financeiro que é concentrador de riqueza — como vimos em Portugal durante a troika — e um ataque aos direitos sociais. Como eles já são fracos no Brasil, vai ser muito fácil destruí-los. O meu alarme foi quando o grupo de Nouriel Roubini — o economista turco que previu a crise de 2008 — apresentou um estudo a dizer que os mercados nada tinham contra Bolsonaro. Vi que era o certificado de legitimação, não de Bolsonaro, mas da política dele. Sobre economia, ele manda para o Paulo Guedes.
Durante a ditadura militar, o crescimento económico ajudou a legitimar o regime. Receia que aconteça o mesmo?
A política económica liderada pelo capital financeiro não está a aumentar o nível de desenvolvimento em nenhum país. A própria Europa tem vindo penosamente a ver isso. Não prevejo um grande boom económico porque não vejo a China a promover a mineração como antes. Steve Bannon ainda agora veio dizer que o Brasil estava dominado pela China e que tem que articular-se é com os EUA. Mas os EUA são tão predadores quanto a China. Qualquer um quer o seu máximo de lucro. Na área extractivista pode haver mais algum crescimento, mas nada do que aconteceu no tempo da ditadura. Nesse tempo foi possível um desenvolvimento de infra-estruturas nacionalista. A Embraer é produto da ditadura. Vai ser comprada pela Boeing e vai desaparecer. A Petrobras era uma grande empresa. Claro que houve corrupção, mas era bom eliminar a corrupção e manter a empresa. Mas a empresa está a vender ao desbarato praticamente toda a riqueza do Brasil.
Estamos a assistir a uma mudança de ciclo regional na América Latina? Há uns anos tínhamos um grupo de países alinhados à esquerda.
Penso que não é regional. A tendência parece-me global. Estamos num interregno entre duas globalizações. A que começou em 1989, com a queda do muro de Berlim e que veio até ao dia de hoje, que assentou em grandes níveis de rentabilidade para os EUA, com a cooperação satélite da Europa, foi a Internet dos computadores pessoais. Essa fase está a entrar em crise. Os computadores e programas são baratos, os smartphones cada vez custam menos. A rentabilidade desta inovação caiu. Quando cai, termina a fase da globalização e aumenta a rivalidade entre países. Foi assim de 1870 a 1914 e depois tivemos duas guerras praticamente seguidas. Neste momento, estamos a ver quem vai controlar a próxima globalização. A inovação tecnológica da próxima globalização vai ser a robótica, a automação e a inteligência artificial. Quem é que está bem posicionado para a controlar? A China. Neste momento, toda a política internacional é a rivalidade entre os Estados Unidos e a China. Só que a China é credora da dívida americana e muitas empresas americanas funcionam à custa do seu investimento na China. Portanto, não pode ser atacada directamente. Tem de ser atacada através dos seus aliados. Basta ver o que diz Steve Bannon na Folha de São Paulo desta semana: era preciso neutralizar a China na América Latina. Quando há rivalidade entre países, o império em decadência quer lealdade total. Não aceita autonomias. Por exemplo, a União Europeia ainda tem lógicas que não são totalmente amigas dos negócios dos EUA. A política dos EUA, neste momento, é destruir a UE. É muito mais fácil lidar com uma Europa dividida do que com uma Europa unida.
Mas acredita que a ascensão do eurocepticismo está relacionada com isso?
Exactamente. Não é teoria da conspiração. Porque é que o “Brexit” foi apadrinhado pelos Estados Unidos? Para criar a primeira fractura na Europa. Porque é que os EUA dizem que os únicos países que estão a seguir um caminho correcto são a Polónia e a Hungria? São os que estão a contestar a UE. O objectivo é criar nas próximas eleições — e Steve Bannon está aí com o seu The Movement — uma maioria de eurocépticos que desmembre a União Europeia e os Estados Unidos possam negociar país a país. E, nessa altura, isolam a Alemanha, a grande potência económica da Europa. Na América Latina, é o alinhamento total. É Macri na Argentina, é Piñera no Chile e é agora Bolsonaro no Brasil. Nós conhecemo-la menos, mas a China também está a ter uma estratégia de hegemonia. Aquela grande infra-estrutura continental, a iniciativa belt and road, é para criar aliados. Para dar a última chave disto: onde é que a guerra de tarifas com a China está a incidir? Nas transferências de alta tecnologia. Os estudos da CIA, altamente sofisticados, dizem claramente no Global Trends 2030 que a China será a primeira economia mundial em 2030. Toda a política dos EUA é para impedir que isso ocorra.
Estamos a chegar ao fim da legislatura. Continua a ver com bons olhos esta solução governativa?
Continuo. Acho que tem todas as condições para continuar. Portugal é uma inovação. O efeito desta aliança de esquerda foi puxar um bocado a direita para o centro. O PSD teve de se passar para o centro. Perdeu o excesso neoliberal de Passos Coelho como única solução de poder. Penso que uma direita neoliberal que se opõe a qualquer política social, como foi a política de Passos, por agora, está neutralizada.
A actual solução teve por base “convergências mínimas” para chegar ao poder em 2015. Passava por afastar Passos Coelho, por exemplo. Não havendo essa circunstância, acha que mesmo assim é repetível?
Não vejo nenhuma razão para não acontecer. Na Alemanha, uma coligação de outro tipo, que era o SPD com uma direita muito moderada e do centro, durou muito tempo. Está agora em crise, mas é ao fim de muitos anos. Não vejo nenhuma razão para que ela tenha de ser apenas uma solução de emergência contra a austeridade.
Mas teria de alargar as convergências.
Provavelmente. E teria de haver um pouco de mais ousadia e de cumprir as promessas de 2016. A ideia é que a partir de 2018 teríamos alguma folga para fazer investimento nas infra-estruturas e na função pública. Isso tem de ser cumprido. A esquerda tem mostrado uma maturidade enorme para engolir alguns sapos. Por exemplo, no caso da legislação laboral, que foi negociada com a direita. Depende um pouco do PS, que continua a ter dentro de si próprio uma corrente mais à direita. Não é a corrente de Mário Soares, que António Costa representa, mas são outras correntes que se foram construindo na lógica de Tony Blair. Um deles é Augusto Santos Silva, meu colega sociólogo. [Agora] É-lhes mais difícil, porque tudo o que diziam da grande desgraça que seria o PS articular-se com a esquerda não aconteceu. A esquerda tem mostrado contenção, um sentido de regime democrático e de defesa da democracia, embora com divergências. O PCP é contra a NATO, o PS é a favor, o PCP é contra o euro, o PS é a favor. Mas vão-se entendendo. São alianças pragmáticas.
A questão sobre a possibilidade de repetir a solução ia nesse sentido, de haver diferenças em que não há convergência possível.
Sim, mas onde há convergência ainda há muita matéria. Foi para parar a austeridade.
… que agora já não se coloca.
Coloca. Não chegámos ainda aos níveis de vida que tínhamos antes da crise. Ao nível de desemprego, sim. Portugal estava a aproximar-se da média europeia até 2000. Quando Portugal entrou para a UE em 1986, tínhamos 50% do rendimento médio da União. Em 2000, estávamos em 75%. Desde 2000 temos vindo a regredir. Nem sequer começámos uma aproximação. Estancámos e agora era preciso começar uma aproximação. Para isso, uma solução de esquerda era melhor.
De uma perspectiva de esquerda, acha que foi feito o suficiente nos últimos quatro anos. Houve uma política de reversões das medidas da troika. Mas isso é suficiente?
Não é. O que estava nos acordos era que uma primeira fase da articulação parlamentar fosse conter a austeridade. Era parar a privatização do que ainda era possível privatizar. Estancar também o empobrecimento das classes médias e baixas. Isso fez-se. Temos vindo a ver que, ao nível da função pública, há alguma tentativa de repor os rendimentos perdidos. Há limitações europeias muito graves e aqui é que a UE vai ter uma palavra decisiva. O facto de a legislação laboral ser votada à direita não é apenas por vontade do PS, é uma política da UE, que quer a flexibilização, ou seja, a precarização das relações do trabalho. Acho que os portugueses ficaram muito ofendidos com a agressividade de 2011, sobretudo jovens, mandados emigrar, que não tinham lugar no país… Ficaram com uma má memória daqueles tempos.
Ainda assim, a direita teve a maior parcela dos votos em 2015.
Mas isso sempre foi tradicional em Portugal. Desde 1974 que a maioria vota à esquerda e somos governados à direita porque a direita está unida e a esquerda está dividida. Não digo em todos, mas em grande parte dos ciclos eleitorais o país tem votado à esquerda. Agora há uma unidade de esquerda e tem de haver a mesma vontade dos três partidos em manter a coligação. Não vejo nenhuma razão para que seja impossível. Sobretudo pela credibilidade que a experiência portuguesa teve na UE. Quando está a ser atacada pelos Salvinis, pelos Kaczynskis e pelos Orbáns, vai dar um tiro no pé e virar-se contra estes, que são os que estão a defender a UE? Portugal tem todas as condições para que as instituições europeias facilitem a continuação desta experiência. O que eu prevejo, e posso estar a ser optimista, é que a própria UE está a começar a olhar para si própria e a ver esta política neoliberal, que é construída por mais de 600 lobbyistas em Bruxelas.
Em 2017, também se mostrava optimista em relação a uma eventual exportação da “geringonça”.
Mantenho-me optimista. Este livrinho [puxa da prateleira o livro Esquerdas do Mundo, Uni-vos!] saiu no Brasil e vou lançar agora a edição espanhola. Estão a pedir edições em Itália, no México, na Colômbia e na Argentina, para já. Esta ideia da unidade de esquerda está a fervilhar na política. Não como soluções de governo, mas como articulação. É uma vitória contra o dogmatismo e o sectarismo que dominou a esquerda durante muito tempo. Penso que as esquerdas começam a ver que têm de se unir, porque qualquer dia é tarde demais.
Falou do papel central da Alemanha. Agora que a saída de Angela Merkel está no horizonte, há a hipótese de a crise das democracias chegar a Berlim? O AfD, de direita radical, está a crescer.
É um perigo real. A Alemanha destruiu a Europa duas vezes pela guerra. Quando veio a crise da Grécia, o meu medo era que a Alemanha destruísse a Europa por via financeira. Temos muito medo da Alemanha. No entanto, ao contrário do que acontece no Brasil, a memória do nazismo foi muito forte. Não houve um branqueamento.
Terminou o doutoramento em Yale em 1973 e voltou nesse ano para Coimbra. Cinco anos depois fundou o CES, que está agora a comemorar 40 anos.
Estava contratado para ficar na Universidade de Nova Iorque, mas vim a Portugal, para ver como estava. Era um período de abertura do regime marcelista e tinha-se criado em Coimbra uma faculdade nova [a de Economia] pelo ministro mais liberal, Veiga Simão. Comecei a dar aulas sem compromisso em Setembro e a 25 de Abril do ano seguinte veio a Revolução. Nessa altura, decidi voltar a Portugal e desvinculei-me da Universidade de Nova Iorque. Depois fui liderar a Faculdade de Economia, que ainda não tinha Sociologia. Em 1978, criámos aqui o CES, para começar a fazer investigação na área das ciências sociais. Na altura, havia apenas o gabinete do doutor [Adérito] Sedas Nunes, em Lisboa, que deu origem depois ao Instituto de Ciências Sociais (ICS).
Havia um défice de estudos académicos nessa área?
Absolutamente. O único grupo era o Gabinete de Investigações Sociais, de Sedas Nunes, que era tolerado. Quando vim dos EUA, tive uma conversa com ele, que me convidou para ficar. Eu disse-lhe que queria fazer alguma coisa em Coimbra. O CES surge tardiamente na Europa, mas hoje somos um dos maiores centros de ciências sociais, uma comunidade de 800 pessoas. Na altura, éramos meia dúzia. Juntámo-nos e tentámos fazer do atraso uma força.
O atraso social do país justificava que surgisse um centro do género?
Todas as teorias sociológicas que tinha estudado nos EUA não se aplicavam a Portugal, que não era um país do primeiro mundo, nem era do terceiro mundo. Era um país intermédio, a que chamámos depois a “semiperiferia”. O objectivo era mostrar que a especificidade sociológica e política exigia uma análise feita por nós próprios com base em quadros teóricos feitos por nós a partir do conhecimento internacional. Fizemos do atraso um avanço. Somos hoje uma instituição muito internacionalizada, de tamanho médio, com publicações científicas muito fortes e com uma responsabilidade cidadã. Durante a crise, o Observatório das Crises e Alternativas foi uma alternativa ao pensamento único.
O CES confunde-se com a sua actividade cívica?
Não. O CES é extremamente plural. Tem gente que está próxima de praticamente todos os partidos e actividades cívicas muito diferentes. Sofremos um bocadinho de “Lisboa-centrismo”, que cria estereótipos. Alguns cientistas sociais conservadores não gostam da posição que nós temos no país. É uma posição de compromisso com a cidadania e com a democracia. Sou o alvo preferido de alguma direita do país, mas sou apenas o director científico do CES. O CES são 800 pessoas, 150 investigadores. Muita gente.
O facto de se posicionar à esquerda influencia a forma como as pessoas percepcionam o seu trabalho?
Não. Há outras esquerdas aqui dentro, tem outras pessoas que não têm a minha posição. Gostaria de saber porque é que sou o alvo preferido de alguma direita na comunicação social. Talvez porque lhes cause alguma impressão. Normalmente não discutem os meus argumentos, insultam-me.
Tem que ver com posicionamento político ou com uma ideia de ciências sociais?
Temos nas ciências sociais duas correntes que convivem democraticamente há muitos anos em todo o mundo: há uma ciência que acha que, para ser objectiva, tem de ser neutra social e politicamente e outra que acha que pode ser objectiva mas não neutra. A segunda até vem da física quântica. Quando observamos os átomos, ou observamos a sua velocidade ou a sua posição. Não podemos analisar as duas coisas. Com os cientistas sociais é o mesmo. Eu quero ser objectivo, mas tenho de saber de que lado estou. Aprendi isto nos EUA e em Yale, num centro conservador do conhecimento. Eu estou do lado dos oprimidos ou dos opressores? Do lado de quem discrimina ou de quem é discriminado? Há uma corrente, que se baseou no positivismo, que diz que objectividade é neutralidade. Se olhar para o comportamento cívico desses cientistas sociais, são todos de direita. Portanto, consideram-se cientistas sociais objectivos e neutros e têm uma posição cívica de direita. Porquê? Porque não são neutros.
Diz que os seus críticos não discutem as suas ideias, insultam-no. É mesmo assim?
Pois claro. Dei uma entrevista à Análise Social [uma publicação do ICS, em 2012] e dois membros do conselho consultivo, a doutora [Maria] Filomena Mónica e o doutor António Barreto, demitem-se por me terem feito uma entrevista? Isto é ciência? Não podemos aceitar a pluralidade? Eu nem gosto de pôr nomes, mas quando uma dessas pessoas diz numa sua croniqueta que o CES é a instituição de ciência mais nefasta do país, acha que não é um insulto? Não têm coragem de discutir. Os meus livros estão aqui [mostra um livro da sua autoria, The End of The Cognitive Empire, da Duke University Press], eu publico nas melhores editoras norte-americanas. Portugal é muito provinciano. Essas pessoas nunca aceitaram que houvesse ciências sociais fora de Lisboa. Sou um grande amigo da actual directora do ICS, da Karin Wall. São coisas que passaram com uma certa corrente nessa instituição rival, que já não está presente sequer. Foram coisas do passado que eu gostava que ficassem no passado. Se eu quero unir as esquerdas, não quero também unir os cientistas sociais na sua diversidade? Não quero que sejam todos antipositivistas, mas que mostrem o que falam. No fundo, a mediocridade grandiloquente é muito grande em Portugal.
Não é só na academia que tem críticos.
Há um de estimação na última página do seu jornal que aproveita qualquer oportunidade. Depois, como têm alguma influência, tenho de responder a jornalistas estrangeiros coisas que ouvem e pensam que são verdade. Por exemplo, converteram-me num defensor da Venezuela. Eu fui muito crítico de Hugo Chávez.
Isso foi por causa do artigo que escreveu Em Defesa da Venezuela.
Contra a demonização e o embargo! Mas nunca foi uma defesa total do regime da Venezuela. Enfim, uma crónica no seu jornal, “Boaventura rima com ditadura”, diz tudo. É um insulto, não é uma análise. De modo que, meu caro, temos de estar preparados, porque isto é uma luta política.