Publicado originalmente no Brasil de Fato
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) irá depor à Justiça Federal, em Curitiba (PR), nesta quarta-feira (14), em um inquérito que investiga o pagamento de obras de reforma em um sítio na cidade de Atibaia, no interior de São Paulo.
Estimadas entre R$ 300 mil a R$ 500 mil de investimento, as reformas no sítio de propriedade de Fernando Bittar, empresário e amigo pessoal do ex-presidente, foram realizadas pela Odebrecht e OAS em 2010, quando Lula já havia se afastado da presidência há dois anos.
A ligação com a OAS parte também do fato de que ela se encarregou do transporte dos bens de Lula, acumulados durante a presidência, para o Instituto Lula.
Outro ex-presidente da república, no entanto, se valeu do final do seu mandato para reunir empresários no Palácio da Alvorada e arrecadar dinheiro para montar um instituto dedicado à memória de seu governo sem que nenhuma investigação fosse aberta.
Entenda:
“Foi uma noite de gala”. Assim começa a matéria a matéria “FHC passa o chapéu”, de Gerson Camarotti, da Revista Época, retratando a noite em que Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em final de mandato, recebeu “12 dos maiores empresários do país para um jantar no Palácio da Alvorada, regado a vinho francês Château Pavie, de Saint Émilion” para angariar fundos para a construção do Fundação FHC.
Entre raviolis de aspargos, foie gras e perdiz acompanhada de penne de alcachofra e rabanada de frutas vermelhas, e “(…)Diante de uma platéia tão requintada, FHC tratou de exercitar seus melhores dotes de encantador de serpentes”. O tucano coletou 7 milhões de reais (cerca de 18 milhões em valores atualizados, segundo o IPCA) para construir sua entidade particular, voltada a “palestras, cursos, viagens ao Exterior do futuro ex-presidente” e “também para trazer ao Brasil convidados estrangeiros ilustres”, além de abrigar a memória e o arquivo da sua presidência, seguindo o modelo da ONG criada pelo ex-presidente estadunidense Bill Clinton.
Estiveram presentes amigos pessoais do ex-presidente como Jorge Gerdau (Grupo Gerdau), David Feffer (Suzano), Emílio Odebrecht (Odebrecht), Luiz Nascimento (Camargo Corrêa), Pedro Piva (Klabin), Lázaro Brandão e Márcio Cypriano (Bradesco), Benjamin Steinbruch (CSN), Kati de Almeida Braga (Icatu), Ricardo do Espírito Santo (grupo Espírito Santo). Pela doação, se transformaram em co-fundadores da organização.
“A iniciativa de propor a doação partiu do fazendeiro Jovelino Mineiro. Ele sugeriu a criação de um fundo de R$ 5 milhões. Só para a reforma do local, explicou Jovelino, será necessário pelo menos R$ 1,5 milhão. A concordância com o valor foi quase unânime. A exceção foi Kati de Almeida Braga, conhecida como a mais tucana dos banqueiros quando era dona do Icatu. Ela queria aumentar o valor da ajuda a FHC”, relata, com candura, a matéria.
À época, para dissipar questões éticas, o então procurador da República, Rodrigo Janot, afirmou à reportagem da Época que não caracterizaria infração ilegal. “Fernando Henrique está tratando de seu futuro, e não de seu presente. (…) O problema seria se o presidente tivesse chamado empresários ao Palácio da Alvorada para pedir doações em troca de favores e benefícios concedidos pelo atual governo.”
A matéria encerra lembrando que José Sarney também tem um instituto dedicado à memória de seu mandato. Após a presidência, enquanto senador, o político criou a Fundação Memória Republicana, em um convento do século 17 na cidade de São Luís (MA). Em 1992, ele aprovou no Congresso uma emenda ao Orçamento que destinou US$ 55 mil para a instituição.
Pesos e medidas
O tratamento recebido por FHC, que usou seu mandato e um prédio público para construir sua fundação privada, e por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que enfrenta uma série de acusações judiciais, é tão discrepante que o tucano foi chamado em 2017 pela defesa de Lula para testemunhar durante as oitivas da Operação Lava Jato.
Na ocasião, FHC lembrou da “noite de gala” e disse que não aconteceu nada “ilegal”, que apenas recebeu contribuições de “empresários e companhias” com que tinha “relações pessoais”.
Para o ex-presidente é impensável preservar os materiais, “de interesse público”, sem apoio de doadores. A defesa de Lula usou a fala de FHC para desconstruir a denúncia contra o ex-presidente de que o transporte de seus bens, feitos pela OAS, tenha tido objetivo de ser uma operação “dissimulada” voltada à “ocultar a origem da propriedade”, conforme atesta o Ministério Público Federal.
O Ministério Público (MP) acusa o ex-presidente de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Segundo a denúncia, o pecuarista José Carlos Bumlai e as empreiteiras OAS e Odebrecht teriam custeado reformas na propriedade que era frequentada pelo ex-presidente e sua família. A denúncia se baseia em mensagens eletrônicas, registros de visitas do ex-presidente e sua família ao sítio, presença de objetos pessoais da família Silva no local e na delação premiada o empreiteiro da OAS, Léo Pinheiro.
Nesta segunda-feira (12), um dos proprietários do sítio, Fernando Bittar, reafirmou à Justiça Federal que é o real proprietário do imóvel, comprado com recursos próprios, e emprestado ao ex-presidente Lula e sua família desde 2011, para que fosse guardada parte do acervo presidencial.
No depoimento, Fernando Bittar destacou a relação de convívio íntimo com a família do ex-presidente e afirmou que, após ser diagnosticado com câncer, em 2012, a permanência de Lula no sítio aumentou. Ainda segundo Bittar, as obras realizadas eram “simples”, mas “foram ‘superdimensionadas’” pelos procuradores da Lava Jato.
Em nota, a defesa de Lula afirmou que o depoimento de Bittar “não deixou qualquer dúvida de que ele é o proprietário de fato e de direito do sítio de Atibaia”. Os advogados de Lula afirmam que “o inquérito policial instaurado em 2016 para investigar a propriedade do sítio foi encerrado sem qualquer conclusão sobre esse tema sob o argumento de que ‘foi oferecida denúncia pelo MPF’ e, diante disso, ‘não cabe mais a esta autoridade, em nível de apuração preliminar, dar sequência a essas investigações’”.
A defesa ainda argumenta que “o crime de corrupção passiva pressupõe que o funcionário público pratique ou deixe de praticar ato de sua competência (ato de ofício) em troca do recebimento de vantagem indevida. No entanto, a força Tarefa da Lava Jato não indicou qualquer ato da competência do Presidente da República (ato de ofício) que Lula tenha praticado ou deixado de praticar que pudesse estar relacionado com reformas realizadas em 2009 em um sítio de Atibaia e, muito menos, em 2014, quando ele não exercia qualquer cargo público”, diz em nota.