Publicado originalmente no Brasil de Fato
Psicanalista de formação, Guilherme Boulos é militante e coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que luta pelo direito à moradia. Aos 36 anos de idade, foi candidato à Presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). No segundo turno, apoiou o candidato derrotado do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad.
Durante sua participação no programa No Jardim da Política, da Rádio Brasil de Fato, Boulos falou sobre a experiência de haver participado das eleições presidenciais, contou sobre sua visita recente ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba, e abordou as perspectivas para os movimentos populares no próximo período, sob o governo de Jair Bolsonaro.
Confira a íntegra da entrevista com Guilherme Boulos:
Brasil de Fato: Guilherme, para começar, queria que você nos contasse como foi a experiência da participar como candidato presidencial nessas eleições?
Guilherme Boulos: Olha, eu saio dessas eleições com o sentimento de missão cumprida. Não pelo resultado eleitoral, que foi adverso para o nosso campo e, acredito, adverso para os direitos sociais, para a democracia brasileira. Mas porque nós fizemos uma campanha que plantou sementes para o futuro. Nós encaramos os grandes temas, não recuamos de colocar nenhuma das bandeiras necessárias, não abrimos mão de princípio para fazer média com qualquer setor da sociedade, fizemos uma campanha bonita, uma campanha com esperança. Agora, essa eleição foi muito marcada, e é assim que ela vai ficar para a história, pelo ódio, pelo medo, até pelo pânico, na reta final. Uma eleição em que a esperança e o projeto de futuro tiveram muito pouco espaço. Isso, evidentemente, se refletiu no nosso desempenho eleitoral, na vitória do Jair Bolsonaro, que soube explorar politicamente o medo e a desilusão do povo em relação ao sistema político e, com isso, conseguiu vencer as eleições. Além disso, foi um enorme aprendizado. Além desse sentimento de missão cumprida, eu tinha feito um compromisso com a Sônia Guajajara, minha companheira de chapa, quando nós firmamos essa aliança, entre o PSOL, o PCB, com um conjunto de movimentos sociais, de que a única coisa que nós precisávamos ter certeza é de que a gente sairia desse processo com mais dignidade do que entrou. Nesse sentido, conseguimos atingir esse resultado tão necessário e que não é um resultado fácil de se atingir no processo eleitoral, marcado por mentiras, por baixaria, por recursos de toda sorte. Agora, além de tudo, é um processo em que você conhece o Brasil, o Brasil profundo, as pessoas. Uma campanha eleitoral, quando bem feita, é uma oportunidade de se dialogar, se ouvir, se aprender. Eu saio com um aprendizado muito maior nessa campanha do que quando entrei nela.
Em outros processos eleitorais, o PSOL defendeu a neutralidade ou o chamado voto crítico no PT. Dessa vez, você entrou de cabeça na campanha do segundo turno. O que mudou?
Houve toda uma discussão de que o PSOL mudou. O que eu acredito é que o Brasil mudou. O PSOL, em todas as eleições anteriores, concorreu com o PT no governo e sendo oposição de esquerda ao governo do PT, colocando temas importantes, apontando erros, limites dos governos do PT durante os 13 anos. Agora, nos últimos três anos ocorreu um golpe parlamentar no Brasil, assumiu um governo ilegítimo, prenderam o Lula, principal liderança política, de maneira injusta, uma prisão política. Tivemos uma mudança na sociedade brasileira, um avanço do conservadorismo que veio depois se desdobrar na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, então o país mudou, e exigiu da esquerda, com responsabilidade com a história e com o povo, que também adequasse a sua postura com as necessidades do momento. Não foi apenas a minha candidatura, foi um movimento que o PSOL fez. Quando escolheu, inclusive, por essa candidatura, por ampla maioria, quando decidiu junto conosco seguir essa aliança, quando faz um balanço positivo da nossa participação nesse processo eleitoral, é esse recado que o PSOL e que as forças sociais que construíram a nossa campanha estão dando para a sociedade brasileira.
Antes de ser candidato você pesou o risco que havia de expor o Movimento Sem Teto?
Nós pesamos isso coletivamente, no debate dentro do movimento. E a avaliação que nós fazemos desse processo é que a campanha eleitoral permitiu quebrar muitos preconceitos. Ao contrário do que seria uma eleição feita por marqueteiro, eu não neguei a minha participação no MTST. A gente sabe o tamanho do preconceito que MTST sofre, que o MST sofre, que os movimentos sociais sofrem no Brasil. Como a questão da ocupação de terras ou de terrenos abandonados é destorcida no debate da grande mídia, como se fosse coisa de vagabundo, coisa de tomar o que é dos outros, coisa de terrorista, de quem não tem o que fazer, de quem não quer trabalhar. E nós decidimos, nessa campanha eleitoral, enfrentar esse tema. Durante os debates, inclusive mais de uma vez, eu tive a oportunidade de fazer a defesa política do MST, do MTST, da reforma agrária, da reforma urbana, da luta por moradia. Depois, nós percebemos que isso ajudou a abrir a mente de muita gente. Muita gente que tinha uma mente preconceituosa nos disse: olha, eu não sabia que era isso. E descobriu, a partir da nossa participação no processo eleitoral, que não era um bando de terrorista vermelho, vagabundo que não quer trabalhar e que vai invadir a sua casa e dividir a sala no meio. Esse tipo de mistificação oportunista que é feita do movimento, a gente ajudou a combater na campanha eleitoral com a visibilidade que a campanha eleitoral proporciona. Então a nossa avaliação é que o MTST saiu mais forte desse processo. Não só desse ponto de vista da defesa de princípio, da quebra de preconceitos, mas também o movimento cresceu, passou a existir em estados onde não existia. Por muitos lugares onde a gente passou com a campanha, pessoas das comunidades, de associações, nos procuraram para montar o MTST, porque viram que era um movimento sério, porque se identificaram com a pauta que o movimento levava. Então a nossa campanha acumulou forças para o MTST, para o PSOL, para o conjunto das forças sociais que construíram ela.
E você viu de dentro como funciona a campanha eleitoral no Brasil. O que mudou na sua visão sobre esse processo?
Te digo que durante a campanha tive muito mais oportunidade de reforçar a avaliação que tinha do que mudar. O sistema político brasileiro é muito desigual. A gente sabia disso estando fora dele, e agora atuando como candidato a presidente da República, eu tive a oportunidade de vivenciar isso na pele. Tempo de televisão, recurso de campanha, cobertura da grande mídia, tudo isso é algo impressionante. A grande mídia escolheu para quais candidatos ela dava atenção, dava cobertura diária nos telejornais, nos jornais impressos, e a outros não. Então, o jogo é profundamente desigual e reproduz uma distorção no sistema político. Agora, esse nosso campo e o PSOL teve uma vitória importante ao atingir a cláusula de barreira, dobrando a bancada parlamentar, como parte desse esforço coletivo que foi feito, nadando contra a corrente. Apesar de todas as dificuldades que uma campanha eleitoral traz para quem não está na cúpula do jogo político-partidário no Brasil.
E agora, o que se coloca para você? Vai atuar mais ativamente no PSOL? Quais são os planos?
A decisão que nós tomamos nesse momento foi de manter a aliança que deu origem a essa candidatura. Discutimos isso com o PSOL, que teve uma reunião no último final de semana do seu diretório nacional, corroborou essa posição por amplíssima maioria, essa decisão também foi tomada a partir do MTST, dos movimentos que tiveram conosco e fizeram esse debate, e a nossa perspectiva é de que essa aliança cumpriu e cumpre um papel importante. E a gente sempre disse, ao longo do processo, que não era apenas uma eleição. Que isso não se encerrava no dia 7 de outubro, que o que nós estamos construindo é um projeto político para a nação. Nós estamos discutindo um projeto de futuro para a sociedade brasileira, de reorganização de um campo e de uma atuação conjunta. Existem confluências políticas importantes nesse campo, que se expressaram na candidatura, mas após o processo eleitoral vão se expressar na luta social, na forma de fazer oposição política ao governo Bolsonaro. Então essa aliança permanece. E nós vemos hoje um grande desafio, não só dessa aliança, e não apenas da esquerda brasileira, que é o desafio de formar uma frente ampla pela democracia no nosso país. Esse desafio está posto. E quando temos feito esse debate democrático nas últimas semanas, tem gente que diz: mas Bolsonaro ganhou democraticamente, vocês não estão aceitando o resultado das urnas, isso é conversa de perdedor, a democracia não está em risco porque houve uma eleição democrática. Primeiro eu digo: é verdade, Bolsonaro ganhou as eleições. Podemos questionar, como questionamos, as fake news, o caixa dois que bancou empresas para fazer disparos de Whatsapp, mas ele teve a maioria dos votos. Nós não somos o Aécio Neves e não vamos cumprir esse papel ridículo que o Aécio Neves cumpriu em 2014 na história brasileira. Agora, democracia não é a pessoa ir apertar um botão de quatro em quatro anos e ela existe um domingo a cada dois anos na vida do brasileiro. Democracia tem que ser uma prática cotidiana. Bolsonaro foi eleito presidente da República, mas não recebeu mandato para ser ditador, nem imperador, nem para mandar a oposição para a ponta da praia, para o exílio ou para a cadeia. Ele precisa seguir a Constituição, precisa respeitar as liberdades democráticas, as liberdades de manifestação, de expressão, de imprensa. O mandato que ele recebeu inclui que ele cumpra a Constituição nesses aspectos. E o que nós temos visto com muita preocupação é que ele, ainda como candidato, fez declarações absurdas, desde o elogio à ditadura, elogio a torturador, aquele famoso discurso na Avenida Paulista, por uma live no Facebook, onde ele disse que ia varrer os vermelhos, que a oposição teria essas três opções: exílio, prisão ou ponta da praia. E para quem não sabe, “ponta da praia” é em alusão a uma base das Forças Armadas que foi utilizada na ditadura militar como centro de tortura de quem se opunha à ditadura. Então, quando nós estamos falando de uma frente pela democracia, quando falamos que a luta pela democracia segue na ordem do dia, mesmo após o processo eleitoral, não é um questionamento do resultado das eleições, mas é uma defesa das liberdades democráticas que o presidente eleito ameaça com seu discurso e que nós não podemos deixar que ele ameace com sua prática.
Guilherme, você já disse que a única forma de acabar com o MTST é dar casa para quem não tem. Queria que você explicasse para o nosso leitor e ouvinte qual a situação da moradia, ou da falta dela, atualmente no Brasil.
Esse é um tema fundamental e que, em geral, fica embaixo do tapete. As pessoas têm uma visão de que moradia é uma questão de mercado. Se tem dinheiro, compra. As pessoas se esquecem que o artigo 5º da Constituição diz que moradia é um direito social. E sendo um direito social, o Estado tem responsabilidade por garantir um teto digno para as pessoas. No Brasil, nós temos hoje seis milhões e 300 mil famílias que não têm acesso a moradia digna. A maior parte dessas pessoas não está em situação de rua. Esse é um grupo que está em situação ainda mais extrema. Mas a maior parte talvez sejam pessoas que estão nos ouvindo agora. Alguém que paga aluguel sem poder, que compromete a maior parte da sua renda, ou parte expressiva dela, para pagar aluguel no final do mês. Quantas pessoas eu já ouvi nesses 17 anos que estou no MTST dizendo: eu tenho que fazer uma escolha. Ou eu boto comida na mesa, ou eu compro o leite do meu filho ou eu pago o aluguel. Essa é a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras. Alguém que mora de favor na casa de alguém, sofrendo as piores humilhações, morando em um cômodo de fundo. Alguém que mora em uma área de risco, em uma encosta de morro, em zona de alagamento. Esses são os sem teto brasileiros. E é preciso ter uma política para essas pessoas porque elas não têm casa não é porque não queiram. Não é porque não trabalham ou sejam vagabundas. Essas pessoas trabalham, em sua enorme maioria. Foi feita uma pesquisa pelo Dieese na ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo [SP], organizada pelo MTST no ano passado. 82% dos moradores da ocupação era população economicamente ativa, trabalhando de algum modo. Isso é mais do que a média do estado de São Paulo. Só que são pessoas que trabalham com “bico”, recebendo um salário-mínimo, e recebe R$900 e deixa R$ 700 no aluguel. Trabalha catando latinha, recebe R$ 600 e deixa R$ 500 no aluguel. Porque alguém vai para uma ocupação, debaixo de lona preta, pisando no barro, carregando balde de água porque não tem água encanada? Alguém faz isso porque quer? Uma mãe que leva seus filhos para essa situação faz isso porque acha bonito? Porque não quer trabalhar? Coisa alguma. As pessoas fazem isso por completa falta de alternativa. Ninguém faz isso porque não trabalha. Trabalham. Só que apesar de passar uma vida inteira de trabalho, nunca teve a oportunidade de comprar uma casa. Essa é a realidade de milhões de pessoas no país. É por isso que existe o Movimento Sem Teto, por isso que existe ocupações, a luta por moradia. E sobre as ocupações, é importante que a gente diga o seguinte: o movimento não vai ocupar a casa de ninguém. As pessoas têm esse mito e isso é reforçado pelas mentiras, pelas fake news, outro dia o Bolsonaro usou isso, usando de maneira descarada uma ironia que eu fiz dizendo que íamos invadir a casa dele. E falou isso em uma live, falou no Fantástico, em não sei onde mais. E isso reforça uma ideia de que o Movimento Sem Teto vai chegar na casa das pessoas, arrombar a porta e invadir. Nada mais falso. Jamais o movimento social fez isso. O movimento ocupa grandes terrenos ou prédios que estão abandonados há muito tempo, que devem imposto, alguns deles, grilados, em situação completamente ilegal, porque a Constituição diz que a propriedade tem que cumprir uma função social. Porque o Estatuto das Cidades regulamenta isso e determina que terrenos ociosos ou prédios abandonados sejam desapropriados para moradia popular após cinco anos com IPTU progressivo. Isso nunca foi feito no país. Porque no Brasil tem lei que pega e lei que não pega. Quando enfrenta interesse de super ricos, da especulação imobiliária, de grande empreiteira, não pega. A atuação do movimento social é para que pegue. É pegar esses terrenos que estão abandonados, é fazer a lei ser cumprida, essa é a luta do MTST e é a luta do MST no campo, com latifúndios improdutivos, com reforma agrária que está prevista na Constituição. Ou alguém acha que um trabalhador rural, que às vezes foi expulso da sua terra, um trabalhador boia fria vai ficar na beira de uma estrada, debaixo de uma barraca de lona porque quer? Essa é a realidade dos movimentos sociais. Essas pessoas não são terroristas, não são vagabundas, e isso que a gente precisa dizer para a população brasileira.
A gente viu recentemente a aprovação de um aumento para os servidores do judiciário quando, do outro lado, o orçamento para programas como o Minha Casa Minha Vida (MCMV) tem sofrido cortes enormes. Como você avalia isso?
A gente sabe da injustiça, mas quando a gente vê a injustiça, quando a gente identifica, é outra coisa. Esse aumento do Judiciário custará quatro bilhões para o orçamento brasileiro no ano que vem. Quatro bilhões de reais dava para construir no Brasil 50 mil casas. Quatro bilhões de reais dava para iniciar o processo, em um ano, de universalização da internet no Brasil, gratuita. Se a gente for comparar as disparidades que existem, ficamos assustados. O auxílio-moradia para o Judiciário, deputados e senadores custa mais de um bilhão de reais. Tem um caso escandaloso de um desembargador aqui de São Paulo que tem sessenta e tantos imóveis próprios e recebem auxílio-moradia com dinheiro público. E eles alegam que não tem dinheiro para moradia popular em meio à crise. Vamos ser justos, o enxugamento de recursos do Minha Casa Minha Vida começou ainda no governo Dilma. Em 2015, a política de ajuste fiscal levada a cabo pela Dilma e o Joaquim Levy, que agora, não por acaso, virou presidente do BNDES no governo Bolsonaro fizeram um corte brutal no Minha Casa Minha Vida. O Temer em 2016 e 2017 manteve esse corte, agora em 2018 também. As contratações não se encerraram, mas foi a conta-gotas, muito aquém da demanda do país, não atendendo sequer o que estava represado desde 2015. 80% do deficit habitacional brasileiro são famílias que ganham menos de três salários-mínimos, que muitas vezes não têm como comprovar renda para fazer um financiamento imobiliário. Essas pessoas que precisam ser atendidas por um programa habitacional popular. E a faixa do MCMV que atende essas pessoas é a chamada faixa 1, que está seca, e que o Paulo Guedes, homem forte da economia do Bolsonaro, já disse que quer acabar com isso. E que vai manter só a faixa 2, que é, na verdade, uma linha de crédito, uma linha de financiamento imobiliário, não um programa social. Não atende aqueles que mais precisam. Então, a situação do MCMV hoje é de quase uma morte por inanição, apesar de toda a resistência que têm feito os movimentos sociais de luta pela moradia.
Na quinta-feira, dia 8 de novembro, você esteve em Curitiba, na sede da Superintendência da Polícia Federal, visitando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como foi esse encontro e sobre o que conversaram?
Foi uma visita de solidariedade. Eu não tinha podido durante esses sete meses visitar o Lula, porque eu estava em campanha eleitoral. E fui levar, mais uma vez, a nossa solidariedade, a nossa compreensão de que o Lula é um preso político, alguém que está preso injustamente e o nosso compromisso com sua liberdade como uma luta democrática. Foi uma conversa de reforço dessa relação e desse compromisso. Encontrei o Lula bem, apesar, evidentemente, de ser vítima dessa situação, de estar sofrendo com essa situação, preocupado com os destinos do país, mas bem fisicamente, bem psicologicamente e com uma lucidez política muito importante.
E o responsável pela prisão de Lula agora será o Ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Como você viu essa indicação?
Eu acho que isso fechou o ciclo. Do ponto de vista imediato, foi uma expressão da vitória que tiveram nas urnas. Mas do ponto de vista da história, foi o maior tiro no pé que eles poderiam dar. E a própria imprensa internacional, que está mais distante da luta política imediata no Brasil, que não vai tomar um partido mais direto de A ou B, refletiu isso com perplexidade. Não lembro qual dos grandes jornais que publicou uma manchete que dizia: juiz que prendeu o presidente Lula é contratado para participar do governo do seu adversário político. Foi isso que aconteceu. Alguém que foi responsável por tirar o Lula das eleições no momento em que ele era o líder nas pesquisas de intenção de voto se beneficiou de maneira direta dessa decisão, porque agora vai participar como Ministro da Justiça de um governo que foi eleito, em uma medida importante, também por essa medida de retirar o Lula do processo eleitoral. Agora, há um agravante nisso que precisa ser investigado. O [General Hamilton] Mourão, vice-presidente eleito, e que não contém as suas palavras, é um boquirroto contumaz, declarou que o Paulo Guedes teria procurado o Sérgio Moro ainda durante o processo eleitoral para fazer o convite. O Moro, em uma entrevista recente, disse que foi no segundo turno, tentando corrigir. Precisamos saber se foi. Porque se essa procura foi feita ainda no primeiro turno, antes do Moro soltar aquelas delações do [Antônio] Palocci, ou seja, ele teria atuado como juiz para intervir num processo político do qual ele se beneficiou diretamente. Isso precisa ser investigado.
No último dia 11 de novembro, a reforma trabalhista do governo Temer completou um ano. Como você avalia os resultados dela?
Olha, eles disseram que a reforma seria para garantir empregos retirando direitos. Ela retirou direitos e não garantiu empregos. Esse é o saldo desastroso da reforma do Temer. E nós dizíamos isso lá atrás. O Bolsonaro agora insiste nesse discurso e fala em aprofundar a reforma trabalhista com a tal “carteira de trabalho verde e amarela”, que é a formalização da negação de direitos. É incrível a que ponto chega o cinismo das pessoas. Eles diziam: retira-se direitos, então a iniciativa privada vai investir e isso vai gerar empregos. Isso não aconteceu porque o chamado “custo Brasil” não é o maior fator que faz com que o investimento não aconteça no Brasil. O que faz com que a taxa de investimento esteja baixa no Brasil hoje é, sobretudo, uma ausência de perspectiva de futuro, uma ausência de estabilidade, de saber para onde vai o país. Nenhum país, jamais, saiu de qualquer crise econômica sem investimento público. O Estado é o motor da recuperação econômica, e isso não tem nada a ver com socialismo. Nos Estados Unidos, na crise de 2008 o Estado fez isso. Para sair de crise, o Estado precisa reorganizar a economia e fazer investimento público. Isso é o que gera uma perspectiva de longo prazo. Por exemplo: se você tem um plano de investimentos para o Minha Casa Minha Vida para os próximos cinco anos de R$ 100 bilhões ao ano. Isso é uma garantia para todos que estão na construção civil de que o mercado estará aquecido. Isso estimula investimentos de todas as áreas econômicos do entorno da construção civil, desde construtoras até quem produz piso, quem trabalha com ferro, quem trabalha com alimentação para servir em obra. É isso que dá garantia e faz com que o setor privado retome investimentos. Quando o poder público zera investimentos no Brasil, e é o que tem acontecido, isso gera total falta de perspectiva em relação à recuperação econômica. Se você é um pequeno empresário que quer investir na área de construção, você vai se sentir seguro para ampliar os seus negócios e contratar mais gente, ainda que de forma precarizada, se você não tiver clareza se há um mercado consumidor, se você não tiver clareza se o Estado vai resguardar isso, se há segurança jurídica? A política de ajuste fiscal que eles propõem gera um desajuste fiscal, o que é mais grave. Eles estão há quatro anos, sem parar, fazendo a política de tesoura. Só cortes. Cortes nas áreas sociais, cortes nos investimentos públicos de forma geral. Quando se corta, a economia movimenta menos dinheiro, contrata menos, gera mais desemprego, as pessoas consomem menos e o Estado arrecada menos imposto no ano seguinte. Então o ajuste fiscal gera um desajuste porque reduz a arrecadação. É isso que nós temos vivido. Eles cortam, cortam, cortam, e o deficit público continua. E é evidente. Vai continuar e vai se aprofundar, jogando o país no buraco e aumentando o desemprego. Não é cortando direito que vai se resolver isso, pelo contrário, as pessoas tendo mais direitos, mais garantias, tendo 13º salário, tendo aquilo que a lei assegura, tendo trabalho com carteira assinada, um salário digno, isso é, inclusive, um fator de mobilização econômica. É isso que precisa ser feito, esse é o nosso projeto. O projeto do Jair Bolsonaro junto com o Paulo Guedes é de aprofundamento de toda a desgraça econômica que o Temer fez e isso, evidentemente, não tem como não gerar decepção e desilusão em parte da sociedade que votou em Jair Bolsonaro. E nós temos que continuar dialogando com esses trabalhadores, com essa parte da sociedade brasileira, mostrando qual é o caminho para uma recuperação econômica de verdade. Não é com menos direitos, é com mais direitos.
E por aí vem uma reforma da Previdência.
A reforma trabalhista e a reforma da Previdência estão ligadas de maneira perversa. Porque veja: quando se faz reforma trabalhista, se retira milhões de trabalhadores da formalidade. Os empregos que tem sido gerados no Brasil, no último ano, em sua enorme maioria foram empregos informais, sem carteira assinada. O que acontece quando você tira da formalidade e coloca na informalidade? A Previdência arrecada menos. As pessoas contribuem com a Previdência através de um emprego formal. A Previdência arrecadando menos você aprofunda o problema previdenciário que eles usam como justificativa para fazer a reforma. Olha o absurdo da coisa! A questão da Previdência precisa ser tocada. Evidentemente quando o país envelhece, você tem uma mudança da pirâmide etária, o sistema de sustentação da Previdência precisa ser discutido aqui ou em qualquer outro lugar do mundo. Mas não é retirando direitos, é mexendo em privilégios. Nós queremos fazer um debate sobre Previdência, mas fazer um debate sobre Previdência acabando com desonerações em folha de empresários que reduzem a arrecadação, pondo fim à DRU – Desvinculação de Receitas da União – que retira um terço de todos os recursos que deveriam ir para a Seguridade Social e para a Previdência, muitas vezes para pagar juros da dívida pública, para desviar para outras áreas. Nós queremos debater sobre Previdência, enfrentando privilégios das cúpulas dos poderes, supersalários, aposentadorias especiais, juiz que recebe auxílio-moradia tendo casa, outros tipos de auxílios inaceitáveis, inclusive em setores militares. Imagine que, proporcionalmente, o ônus da Previdência militar é muito maior do que a do setor civil. Não é acabando com a aposentadoria rural. Isso é uma covardia. Não é mexendo com benefício de prestação continuada, outra covardia. Querendo pegar a aposentadoria de um, dois salários-mínimos de quem trabalhou a vida inteira, aumentando o tempo de contribuição, aumentando idade mínima. Isso é um disparate. E olha, o que eles estão começando a lança é ainda pior. A reforma do Temer pode se tornar fichinha perto da proposta de Paulo Guedes. Eles estão falando em sistema de capitalização. Procurem saber o que aconteceu depois da reforma previdenciária no Chile. Centenas de milhares de idosos jogados na miséria, nas ruas de Santiago e de outras cidades do Chile, no semáforo, pedindo esmola para poder comer porque acabaram com o regime de repartição solidária, de solidariedade geracional, que é o nosso regime e botaram a capitalização completa. O que é a capitalização? Você vai ter aposentadoria se você pagar para ter. Se você poupar durante a sua vida labora, você terá aposentadoria. Se você não pagou para ter, meu amigo, se vira, trabalhe até os 110 anos de idade.
Não podemos deixar de falar do assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, que completa oito meses sem solução. O que você tem a dizer sobre esse caso?
O assassinato da Marielle foi um marco da violência política, da barbárie tomando conta da discussão política no Brasil. O assassinato da Marielle anunciou, inclusive, o que foi essa campanha eleitoral. A impunidade em relação ao assassinato da Marielle é tão grave quanto o assassinato. É inacreditável que, depois de oito meses, um crime que ganhou proporções internacionais, um crime político, continue impune. Esse foi um crime político, afinal de contas ela era vereadora, porque ela tinha posições firmes, também porque era uma mulher, negra, lésbica. E a política é fechada, cada vez mais, a essas várias expressões da diversidade no nosso país. E a Marielle, nesse lugar, teve um papel de combatividade incrível. Uma das lideranças políticas mais promissoras do Rio de Janeiro e do Brasil. Foi assassinada de forma brutal, covarde, em um crime político, e oito meses depois, as investigações não levam a resultado algum. É inacreditável que a gente esteja em uma situação como essa. E sabe qual é a senha, a mensagem que isso passa? É como se fosse um salvo-conduto, pode tudo. Um crime que ganhou essa repercussão, com uma liderança política expressiva, não se descobriu e ficou por isso mesmo, então parece que pode pegar o padre e a freira que atuam no conflito de terras no Pará e matar que não vai acontecer nada. Pode pegar a liderança sem terra, a liderança sem teto, o sindicalista, pode tudo. Se o crime contra Marielle não for esclarecido, a mensagem que o Estado brasileiro estará dando para a sociedade é que liberou geral.