Publicado originalmente na Rede Brasil Atual
Há 50 anos, o regime ditatorial civil-militar, que alcançara o poder por meio de um golpe quatro anos antes, em 1964, dava seu passo mais sombrio com o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5. Naquele 13 de dezembro, a força da ditadura fechou o Congresso, cassou parlamentares, demitiu funcionários públicos, suspendeu habeas corpus e quaisquer garantias constitucionais. O resultado foi a institucionalização da tortura e da censura no país.
A data foi lembrada com um grande ato na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo. Lideranças, artistas, intelectuais e ministros de todos os governos após a redemocratização assinaram o Manifesto em Defesa da Democracia. O que era para ser uma noite de respeito e memória acabou se tornando em um ato de resistência. Isso porque aqueles que usaram do microfone, foram unânimes em alertar para os perigos que rondam novamente o Brasil.
Perigos que ascenderam com a extrema-direita e resultaram na eleição de Jair Bolsonaro que, abertamente, defende a ditadura e a tortura. “Estamos aqui porque sentimos que o Brasil está sob ameaça”, declarou o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, que foi ministro durante os governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. “Brasileiros estão sob ameaça. A democracia está sob ameaça. Os direitos humanos, o meio ambiente, as mulheres, os homossexuais, os negros. Toda a nação está sob ameaça”, completou.
“Estamos vendo isso claramente e contra isso nos levantamos. Estamos firmes, juntos, em favor da democracia e da nação”, disse. Para o economista, o país chega a este ponto como parte de uma conjuntura internacional. “Há 40 anos, o mundo deu a virada do neoliberalismo. Uma ideologia absolutamente violenta, antissocial e autoritária que pretendeu reformar o mundo a partir da ideia de competição. Ignoraram a solidariedade, o trabalho comum e o auxílio mútuo. Aqui vimos, de repente, o ódio.”
Neste ponto, Bresser-Pereira se alinha com o discurso de união, que comandou o evento. Com iniciativas como essa, cresce a ideia da formação de uma aliança democrática formada por indivíduos com diferentes ideologias, mas que não desejam perder a liberdade e seus direitos civis, sociais, políticos e ambientais. O professor de ciência política da USP André Singer falou sobre o tema. “Acho que este é um passo de unidade”, disse.
“Essa é a primeira grande resposta depois dessa difícil eleição que ameaça a democracia. Esse é o primeiro passo de uma luta que será longa. Devemos juntar todos os que são a favor da democracia sem pedir atestado para ninguém, acolhendo com toda a generosidade. Essa será a única forma de construir uma nova maioria que vai garantir a permanência da democracia no Brasil e os avanços sociais que tanto precisamos”, completou.
Para o ex-chanceler Celso Amorim, a unidade é a resposta necessária para o momento histórico. “Temos pela frente um desafio complexo. A frente ampla é a saída. Não será fácil, há sutilezas. Os adversários ganharam as eleições. Entre outras coisas, perdemos o discurso racional na direita e na esquerda. Isso foi trocado por pinçadas emocionais que apelam para o medo e o ódio. A luta é para retomar a racionalidade.”
O terror
O ato foi comandado pela jornalista Eleonora de Lucena, que abriu a noite classificando o AI-5 como “um regime de terror de Estado”. Sobre esse terror, falou a também jornalista Rose Nogueira, que foi presa política após o aprofundamento da ditadura, ou o golpe dentro do golpe, como alguns comentavam. “Fico grata de estar aqui hoje. Quem passou por prisão política se questionou se chegaria até aqui”, disse.
“No dia 13 de dezembro de 1968, eu era uma jovem repórter na Folha da Tarde. No dia eu preparava uma matéria sobre o significado deste dia para os católicos. É o dia de Santa Luzia, dia dos olhos, dia da luz. Fiquei sabendo do ato e fui para a redação. Lá, tinha uma mesa nova com um homem de cabeça baixa. O dia foi de desespero, era o censor. A partir dali, começamos com as receitas de bolo. Passamos anos com censura prévia”, disse.
O pior, entretanto, viria um ano depois. “Em 1969 fui presa junto de outros companheiros do jornal. Eu tinha um bebê de um mês. Digo para quem pede por ditadura ou diz que a tortura não existiu, que eu carrego uma sequela perpétua. Depois daquilo nunca mais pude ter filhos. Me deram uma injeção para que eu parasse de dar leite, porque isso atrapalhava o desejo de um tarado torturador. Conto isso para que não se repita. Espero que nunca mais ninguém sofra com nada disso no Brasil”, disse.
Ao concluir, Rose deixou o alerta de que “a resistência à tirania é um direito do homem. Vamos exercer em um tempo próximo”. E foi sobre a luta que falou também Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura. “Meu pai morre em 1975. Quando aconteceu o AI-5, meu pai estava para voltar da Europa, ele trabalhava na BBC. Amigos disseram para que não voltasse, que era perigoso. Ele disse, então, que era mais um motivo para ele estar aqui.”
Marcas
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, que trabalhou na Comissão da Verdade, a ditadura foi um assunto não resolvido, que agora assombra novamente o Brasil. “Fomos o único país a aceitar a anistia para os dois lados. Foi um gol de mão que a sociedade fez, como o fim da escravidão sem reparação. O Brasil sempre ajeita as coisas. Entendo que as pessoas aceitaram esse acordo, mas tivemos consequências muito graves.”
A consequência foi, para a psicanalista, “a crença de que, durante a ditadura, haviam dois lados em luta e que ambos cometeram crimes. Não eram dois lados em uma luta dessa maneira simples. Era um lado que era o Estado, que deveria proteger o cidadão, mesmo sob custódia, respeitando os seus direitos. Do outro, pessoas lutando contra um regime ilegítimo e autoritário. Em termos de vítimas, houve mortes causadas por militantes, mas não chega aos pés dos crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado”, concluiu.
Na seara das marcas da ditadura, a secretária de Direitos Humanos da CUT, Jandira Uehara, confirma a teoria de que “o Brasil tem uma trajetória marcada pela violência e pelo autoritarismo. O AI-5 foi a maior agressão cometida pelo regime militar. Até hoje esse ato contamina. Até hoje, o sistema de Justiça e de segurança pública é baseado na lógica da eliminação dos inimigos escolhidos. Não por acaso, as academias militares seguem a mesma doutrina da ditadura. Não por acaso, a cultura do extermínio levou ao assassinato de ativistas como Marielle, Mestre Môa, entre tantas outras vidas ceifadas. Não por acaso o exército foi convocado para reprimir manifestações contra antirreformas do Temer. Não por acaso Lula é um preso político.”
A presidenta da UNE, Marianna Dias, também lembrou da prisão do ex-presidente Lula e inseriu no mesmo contexto. “O AI-5 matou, torturou, jovens. Principalmente artistas, jornalistas e, 50 anos depois, vimos a prisão política de Lula. Presenciamos a UNE ser processada pelo presidente eleito por crime eleitoral por faixas contra o fascismo. Vemos invasões de universidades públicas pela Justiça Eleitoral proibindo assembleias e faixas. Vemos a promessa do futuro presidente de exterminar os vermelhos, de perseguir militantes. Vemos ele dizer que a tortura é cabível. Precisamos refletir que a ditadura não tem receita pronta nem data de inauguração. Ela vai acontecendo. Nós precisamos selar um pacto geracional pela memória dos que morreram pela libertação do nosso país.”
O risco de regimes totalitários, que “vão acontecendo”, também motivaram o discurso da jornalista Marina Person. “Estar aqui, mais de 30 anos depois das diretas, reafirmando a necessidade que temos de não perder a liberdade que foi duramente conquistada… é um pouco de espanto… reafirmando valores que achei que nunca mais precisaria lutar. Depois dessa eleição muito penosa, depois do resultado, nossa única mensagem é essa”, concluiu.