Jair Bolsonaro foi sincero quando disse, na posse do novo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que deve sua eleição ao general Eduardo Villas Bôas.
“Eu não precisava falar, mas hierarquia, disciplina e respeito é que fará (sic) do Brasil uma grande nação. Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós, mas o senhor é um dos responsáveis por estar aqui. Muito obrigado mais uma vez”, disse.
Ao ouvir, Villas Bôas chorou, como mostra a imagem de TV.
A eleição de Bolsonaro é um plano que começou a ser arquitetado no Exército em 2014, quando se completaram 50 anos do golpe de 64.
A revelação é de uma reportagem publicada na prestigiada publicação Letra P, da Argentina, em outubro do ano passado, três dias antes do primeiro turno das eleições.
O enviado especial Marcelo Falak entrevistou um militar de alta patente, sob a condição de anonimato, e relatou, em detalhes, como o plano Bolsonaro foi preparado.
Segundo ele, na caserna, a eleição de Bolsonaro é definida como o primeiro passo de uma “nova democracia”.
E o que significa isso?
A fonte do Letra P explicou:
A idéia é testar uma “terceira via”, que é algo diferente de uma situação em que os militarem sejam cabeças de um regime próprio ou subordinados passivos a autoridades civis. Queremos ser aceitos como cidadãos. É por isso que estamos falando de uma nova democracia.
Nele, não deve haver restrição à participação de oficiais militares em cargos públicos.
Estamos nos esforçando para que a sociedade, a classe política e a imprensa se modernizem e parem de nos considerar cidadãos de segunda classe. Oficiais militares são pessoas muito qualificadas, somos competentes, conhecemos idiomas, temos pós-graduações. Nós devemos terminar com o fato de que nós não podemos ser ministros
Quando os militares começaram a conversar com Bolsonaro sobre este plano, a imagem do capitão da reserva não era uma unanimidade positiva entre os oficiais do Exército.
O general Ernesto Geisel, um dos ditadores pós-64, se referiu a ele como um “mau militar”, na entrevista que concedeu a um projeto de memória da Fundação Getúlio Vargas.
Em 1986, quando estava na ativa, Bolsonaro conseguiu espaço na revista Veja em que publicou um artigo para reivindicar aumento de salário e espinafrar o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.
Na gestação da “nova democracia”, a partir de 2014, os militares o teriam convencido de que precisava mudar.
“Ele mudou muito pessoalmente, casou com sua terceira esposa, teve uma filha e, algo que ninguém sabe, ele fez psicanálise por dois anos”, disse a fonte.
Mas a mudança que eles mais queriam era da visão sobre a economia.
Segue o que disse o militar de alta patente:
Bolsonaro estava aberto ao diálogo e, dia a dia, vimos que ele mostrava valores importantes, como disciplina, respeito e muita humildade. Ele aceitou nossas sugestões e mudou muitas de suas posições anteriores. Por exemplo, passou do nacionalismo econômico que anteriormente defendia ao liberalismo. Isso, o que é visto na campanha, foi o produto do diálogo que o Exército abriu com ele, não tem dúvidas.
O capitão Exército já chegou a ser um nacionalista extremado, quando andava ao lado de Eneas Carneiro, e falava sobre a necessidade de fortalecer as estatais.
Acertados os ponteiros, militares e Bolsonaro marcharam juntos, alicerçados na ideia de que os antigos partidos não eram o caminho para a volta dos militares ao poder.
A elite nunca se importou com a nação, desde a época do império. Ela só pensava em si mesma e nunca fazia o que o país precisava. Então, ficamos claros que os partidos do centro não se uniriam para enfrentar a esquerda.
Por isso, nessa entrevista, três meses antes de Bolsonaro relatar a existência da conversa entre ele e Villas Bôas que levará para o túmulo, a fonte declarou como estratégicas duas manifestações do comandante do Exército durante o ano de 2018.
Em abril do ano passado, na véspera do julgamento pelo STF do HC que poderia impedir a prisão de Lula, Villas Bôas publicou dois tuítes que podem ser considerados como ameaça aos ministros do Supremo.
Em setembro, na véspera do julgamento pelo TSE do registro da candidatura de Lula, ele concedeu entrevista para o Estadão para dizer que o Brasil não aceitaria a candidatura de um político enquadrado na lei da ficha limpa.
São manifestações golpistas, como lembra o enviado especial da publicação argentina, que seriam inadmissíveis no seu país, mas a fonte considera que não. Segundo ela, se Haddad tivesse vencido as eleições, assumiria.
Não porque as Forças Armadas gostariam, mas porque haveria pressão popular. “Em 64, não havia Facebook, o mundo era diferente. Um golpe não ocorrerá em nenhum caso, afirmou.
Então, quando pressionou as instituições democráticas, Villas Bôas estaria apenas blefando?
Lamentavelmente, o STF cedeu.
A ministra Rosa Weber era (e ainda diz ser) favorável ao princípio da presunção de inocência, isto é, contrária à prisão a partir de decisão de segunda instância.
Mas, no julgamento do HC, votou contra, numa manifestação confusa, em que ela começa dando inclinações de que atenderia ao pedido da defesa do ex-presidente, mas conclui com um cavalo de pau, em que coloca o princípio da colegialidade acima de sua convicção pessoal.
Na prática, foi a primeira vez em que a maioria aceitou perder para a minoria. Pelas manifestações dos ministros, havia, na ocasião, seis votos contra a prisão de segunda instância, e cinco a favor.
A concessão dessa importante entrevista a um jornalista da Argentina parece também indicar um movimento para que o exemplo brasileiro se espalhe pelo continente.
“Falamos sobre essas questões (a doutrina da ‘nova democracia’) com nossos colegas uruguaios, mas infelizmente não com as da Argentina, que ainda sentimos deprimidos demais. Eles têm um treinamento que é muito bom, mas a falta de apoio da sociedade significa que eles ainda não desenvolveram uma perspectiva política”, comentou o militar.
Na perspectiva da “nova democracia”, o adversário eleito é o PT, “a besta fera”. A fonte do Letra P admite que a bandeira do nacionalismo econômico agora é exclusividade dos petistas, mas, para ele, isso não é importante.
Se abandonaram a bandeira do nacionalismo, por que se mobilizaram tanto pela eleição de Bolsonaro como caminho para recuperar espaço no poder?
É uma questão relacionada ao sentimento dos militares que eram de média patente quando o movimento das diretas os mandou de volta aos quartéis.
Com Bolsonaro, contemporâneo deles na Academia Militar de Agulhas Negras, estão de volta.
E a tendência, como ocorreu a partir de 64, é que procurem ocupar cada vez mais espaço. Na época, se dizia que, depois de Castelo Branco, devolveriam o poder aos civis.
Isso não aconteceu.
E o Brasil mergulhou num período tenebroso, sem liberdade política e crise na economia, que terminou com uma recessão profunda (a base da chamada década perdida, a de 80) e com altos níveis de corrupção.
O país não pode permitir que esta tragédia se repita.
Já está em andamento, mas pode ser evitada.
O Brasil é muito maior do que a turma que se formou com Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras.