Em meio a manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público, o governador João Doria tomou a dianteira para tentar evitar que a coisa tome uma dimensão perigosa para seu mandato.
Ontem, o Diário Oficial trouxe publicado o decreto Nº 64.074 assinado pelo governador que, entre outras medidas, proíbe a utilização de máscaras em protestos.
Trata-se da mesma lei sancionada em 2014 por Geraldo Alckmin (de autoria do deputado Campos Machado, do PTB) e que não tinha sido regulamentada até agora apesar de transcorrido o prazo de 180 dias. Considerada por advogados e diversas ONGs ligadas aos direitos humanos como inconstitucional, a proposta de lei dormia na gaveta até ontem.
Em seu artigo mais ruidoso, a lei veta o “uso de máscaras ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça sua identificação durante o evento”. O ativista seria então ‘convidado’ a retirar o paramento. Em caso de negativa: “A recusa poderá caracterizar o delito de desobediência, tipificado no artigo 330 do Código Penal, hipótese em que a pessoa poderá ser conduzida à Delegacia de Polícia para sua identificação e formalização de eventual ato de polícia judiciária”.
Os organizadores da manifestação precisarão preencher um formulário afirmando estar cientes “quanto à proibição do anonimato, da vedação ao uso de máscaras ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça a sua identificação durante o evento”.
Muito bem. Perguntar não ofende: isso irá valer para todos que participam do ‘evento’? Policiais com balaclava e sem identificação na farda serão abordados? Por quem?
O decreto ainda prevê que qualquer protesto deverá “respeitar a livre circulação de pedestres e de veículos”. Bem, se na última quarta-feira o Movimento Passe Livre quase não saiu em caminhada por não estar publicado no Diário Oficial (sim, acredite, os policiais mediadores alegaram isso antes mesmo do decreto) e o ato foi violentamente reprimido ainda bem no início, agora com a proibição de ‘atrapalhar’ os carros é que manifestante nenhum vai poder colocar os pés na rua.
Mas aqui cabe novamente a questão: valerá para todos? Pois é claro como água que o cumprimento dessas determinações pela polícia varia conforme o perfil da manifestação. Enquanto alguns movimentos sociais são atacados com tiros e bombas em menos de 5 minutos, certas manifestações são chamadas de ‘festa bonita’ e seus participantes podem ficar meses acampados em plena avenida Paulista sem serem importunados, mesmo que dificultando a circulação de pedestres.
Demais particularidades da lei exigem que as autoridades policiais devam ser informadas com antecedência de cinco dias da manifestação; qual a natureza do evento; qual estimativa de número de participantes; previsão de tempo de duração. Então ficamos assim: Caso algum habeas corpus concedido desagrade a turma de paneleiros com camisas da CBF, alguém precisará convencê-los que não poderão sair correndo imediatamente para a Paulista, precisarão aguardar 5 dias; Com relação ao número de participantes, um RSVP talvez funcione, talvez não; Já a duração do evento quem pode afirmar é a própria polícia, dado que é ela quem ‘finaliza’ os atos quando bem entende.
O governo Doria, como já se previa, tem tudo para ser ainda mais eficaz do que o próprio Jair Bolsonaro em termos de aprimorar os mecanismos de repressão ao direito de protesto e de criminalização de manifestações e dos movimentos sociais. É nítido quando a PM vem para o protesto com ordens de liquidar a fatura o mais rapidamente possível e é isso que ocorreu, em escala progressiva, nas duas manifestações deste ano contra o aumento da passagem. Na quarta-feira passada até mesmo a imprensa foi tratada com violência. O fotógrafo Daniel Arroyo da Ponte Jornalismo recebeu um tiro à queima roupa.
Doria é a personificação do estado que quer silenciar vozes dissonantes e que, para tal, propaga a balela de que ‘manifestação precisa ser pacífica’. Portanto, antes do próximo protesto, lembre-se de Marcelo Yuca: paz sem voz não é paz, é medo.