Ricardo Salles usa descaso da Vale em Brumadinho para justificar seus projetos

Atualizado em 5 de fevereiro de 2019 às 18:38
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Foto: MARCELO CAMARGO/ABR

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual

Maior acidente de trabalho do país, o rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão, em Brumadinho em 25 de janeiro, já contabiliza 134 corpos resgatados. Outros 199 ainda estão perdidos em meio à lama. A tragédia humana irreparável traz também impactos ambientais incalculáveis. A mineradora, cujo presidente, Fabio Schvartsman, pediu “desculpas” na TV, é a mesma que tem metade do controle da Samarco.

Em 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, em Mariana, rompeu-se, matando 19 pessoas e causando o até então maior crime ambiental da história do Brasil. Até agora, ninguém da Samarco foi responsabilizado. Das 56 multas aplicadas pelo Ibama e pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais, que totalizam R$ 610 milhões, apenas 10% foram pagas.

Para o ministro de Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro (PSL), Ricardo Salles, as tragédias derivadas do descaso das empresas são pretexto para a adoção de seus projetos, pautados pela flexibilização das regras para licenciamento e fiscalização ambiental. Entre eles, a adoção da autodeclaração em caso de empreendimentos que ele chama de menos complexos. Ou seja, o empreendedor se diz em conformidade com a lei na hora de pedir licenciamento. Se está mesmo ou não, só se saberá em uma eventual fiscalização ou mesmo depois de um acidente.

Em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, no domingo (3), Salles afirmou que o cerne do rompimento da barragem é a “gestão pública ineficiente, que foi sendo pautada ao longo do tempo pela ditadura do politicamente correto e de certos conceitos que são impostos à revelia da razão e do bom senso”. “E que precisamos rever toda a legislação, todo o sistema de agências regulatórias, de órgãos fiscalizadores, todo o sistema de freios e contrapesos, enfim, tudo o que rege esse modelo nosso de estado nas diversas áreas, de petróleo e gás, barragens, energia elétrica. Nós temos de ter um senso prático na política pública, deixar de lado as imposições teóricas do patrulhamento ideológico, do politicamente correto. Precisamos ser objetivos, olhar a gestão, a eficiência, a racionalidade, a tecnicalidade, obedecer à boa técnica, o bom senso, a regra do que é factível.”

O mantra que vem repetindo em todas as entrevistas não faltou no programa Pânico, da rádio Jovem Pan, na manhã de ontem (4). À vontade com entrevistadores animados e alinhados com o seu pensamento e postura, Salles não soube responder a diferença entre o Meio Ambiente ser administrado por um ministério ou uma secretaria dentro do Ministério da Agricultura. Voltou a dizer que o governo do qual faz parte tem sido duro com a Vale, que foi multada em R$ 250 milhões, e que “será duramente cobrada por nós, sem subtrair o direito de defesa. Não podemos rasgar o devido processo legal. Mas isso não significa que terá leniência”.

Retórica

Amigo dos ruralistas, condenado por improbidade por atos praticados durante sua gestão à frente da Secretaria de Meio Ambiente no governo paulista de Geraldo Alckmin (PSDB) por ter favorecido empresários, Ricardo Salles tem uma retórica marcada por contradições e equívocos. Primeiro porque o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho expõe o argumento falacioso de Bolsonaro, de que a atuação dos órgãos ambientais tem um viés meramente punitivo e anticapitalista.

“Com o tamanho do desastre e o crescente número de mortos oficiais, esse discurso cai por terra como caíram as barragens da Vale em Brumadinho. Isso claramente cria um desconforto discursivo e político, o que fez com que Ricardo Salles escolhesse a saída fácil de colocar a culpa nos governos do PT”, diz o especialista em estudos ambientais Marcos Antonio Pedlowski.

A fala do ministro, no entanto, explicita a falta de soluções no plano do Ministério do Meio Ambiente. “A que ele aponta, ou seja, a descentralização é uma saída que visa a fugir da responsabilidade de conduzir um processo que, a meu ver está, em parte, direcionado para o Ministério do Meio Ambiente. Aliás, o problema central parece residir no fato de que o ministro Ricardo Salles, e por extensão o governo Bolsonaro, vê o ambiente pelo meio e não como um todo. E, pior, há a visão clara de que a proteção ambiental é uma espécie de entulho de um passado socialista inexistente, o qual precisa ser removido para que a economia funcione plenamente. A questão me parece ser justamente o contrário, como bem demonstram os países com economias mais fortes onde se avança um modelo de proteção ambiental do qual ainda estamos muito distantes”.

Outra limitação de Salles é deixar de apontar um caminho para evitar que situações como as de Mariana e Brumadinho voltem a acontecer. “O pior é que ele faz um esforço claro para depositar uma responsabilidade que hoje pertence a ele em administrações anteriores, mais precisamente nas administrações do PT. Primeiro, ele diz que esta questão não deveria ser tratada com viés ideológico, para depois usar aspectos puramente ideológicos para justificar as suas posições anti-PT. Como se diz nos Estados Unidos, não há como querer ter o bolo inteiro e comê-lo também”, diz .

Essa contradição, segundo Pedlowski, fica mais evidente quando o ministro “esquece de mencionar que está ocupando o cargo num governo cujo líder se elegeu com um discurso que sinalizava para o desmanche completo do sistema nacional de proteção ambiental, a começar pelo Ibama e o Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade (ICMBio). E que todas as medidas adotadas até agora transformavam o discurso de campanha em ações de governo”.

Professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e colaborador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Universidade de Lisboa, Pedlowski aponta uma “nítida postura escapista” de Salles, na tentativa de isentar a Vale de suas claras responsabilidades no caso de Brumadinho. E ao mesmo tempo em que tenta responsabilizar governos anteriores, ignora o fato de que o fortalecimento – e não o desmonte do DNPM e de outros órgãos – é fundamental para melhorar o acompanhamento das atividades de mineração em todo o Brasil. “O que se viu no primeiro mês de governo foi justamente o contrário. Aliás, tudo até aqui já apontava que teríamos um ministério do Meio Ambiente para inglês ver. O que o incidente de Brumadinho veio fazer, entre outras coisas, foi deixar o rei nu.”

No último dia 28, em entrevista aos jornalistas Haisem Abaki e Eliane Cantanhêde, da rádio Eldorado, Salles foi questionado quanto à possibilidade de o gravíssimo incidente servir de alerta para o núcleo duro do governo. Respondeu que “não é alerta para colegas meus. É alerta para toda a sociedade”. Nesse aspecto, Pedlowski tem de concordar com o ministro. “O núcleo duro do governo, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro, sempre demonstrou pouco caso com questões ambientais. Um exemplo disso foi a declaração de Bolsonaro de que o Ibama impulsionaria uma indústria de multas, o que sabemos ser incorreto. Menos de 3% das multas ambientais aplicadas no Brasil são pagas”.

Alteração na lei

A convicção de Salles de que são necessárias novas leis para evitar acidentes como esse também é questionada. Primeiro porque toda atividade que promova alterações físicas, químicas e biológicas no ambiente, é considerada impacto ambiental. Por isso, devem ser realizados os estudos previstos em resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), pelo Código de Mineração e leis específicas, além de normas do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que se tornou uma agência, e os ministérios de Minas e Energia e Meio Ambiente.

A fiscalização das atividades de mineração é responsabilidade do DNPM, acelerado processo de sucateamento. “Dos recursos arrecadados pela Compensação Financeira pela Exploração de Produtos Minerais (Cfem), recebe apenas 2%, enquanto o total deveria ser de 9%. O montante relativo aos 2% foi seguidamente contingenciado, desprovendo o Departamento de recursos mínimos para realizar as suas atividades com um mínimo de eficiência. São 35 fiscais capacitados para monitorar as 790 barragens de rejeitos existentes no país, conforme o jornal O Estado de S. Paulo. Esse número por si só é um escândalo”, avalia Pedlowski.

Além disso, em 2017 houve mudanças nas regras da Cfem. Entre elas, novas alíquotas e percentuais para destinação das receitas entre as localidades diretamente afetadas pela mineração. As alterações embutem ainda a descentralização da fiscalização, o que é temerário, já que os municípios não têm recursos humanos qualificados e nem estruturas administrativas e de pessoal para fiscalização.

“Assim, como pensar que os municípios serão capazes de fiscalizar? Aparentemente, por saberem dessa incapacidade é que os proponentes da fragilização do processo de licenciamento e de fiscalização ambiental sinalizam com o autolicenciamento, como se isto fosse uma espécie de panaceia para curar todos os males. De fato, a aplicação do autolicenciamento deverá elevar dramaticamente a possibilidade de novas agressões ao meio ambiente, e a repetição de outros casos como os que ocorreram em Mariana e, agora, em Brumadinho. No mínimo, deixar o processo de licenciamento na mão das empresas seria como entregar para a raposa a chave do galinheiro. Não tem como terminar bem”.

Conforme ele, há um arcabouço legal específico para regular as atividades de mineração e também para diferenciar aquelas que causam o que se considera impacto ambiental significativo ou não. Um elemento basilar deste código legal é a Constituição Federal de 1988, com um capítulo próprio sobre o Meio Ambiente. E a Resolução 237 do Conama, de 1997, que trata dos processos de licenciamento ambiental e de emissão de licença ambiental para atividades com potencial para degradar e alterar o meio ambiente.

No caso específico das atividades de mineração, há que se citar o Código de Mineração, regulamentado pelo Decreto-Lei no 227, de 28 de fevereiro de 1967, que estabelece regras voltadas à indústria de produção mineral.

É preciso citar a Lei 7.805/1989 e as resoluções 09/1990 e 10/1990, do Conama, que dispõem mais especificamente sobre o licenciamento na mineração. A Lei 7.805, em seu artigo 3º, estabelece que a outorga da permissão de lavra garimpeira depende de prévio licenciamento ambiental concedido pelo órgão ambiental competente.

Cumpra-se a lei

Para Pedlowski, não há necessidade de mudanças na legislação. E sim de investimento na ampliação de quadros técnicos do DNPM, do Ibama, do ICMBio e das agências estaduais. “A descentralização, como prega o ministro, tem tudo para elevar o número de incidentes ambientais graves, que poderão aprofundar ainda mais o processo de degradação ambiental em regiões onde atividades de mineração são realizadas. A solução básica e simples é que se cumpra a lei que está aí, em vez de rebaixar os ditames legais para que as mineradoras possam agir ainda mais com liberdade”.

As barragens da Vale em Brumadinho tiveram de ser submetidas a estudos de impacto ambiental. E a emissão das licenças ambientais traziam “condicionantes”, que são basicamente medidas de monitoramento e mitigação, cuja fiscalização é responsabilidade do empreendedor (no caso a Vale) e dos órgãos governamentais.

“O que está aparecendo agora em Brumadinho é que as condicionantes não estavam sendo cumpridas, nem a fiscalização ocorrendo como deveria. Para piorar, no final de 2018, o Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais rebaixou o nível de segurança exigido para as barragens operadas pela Vale no sistema do Córrego do Feijão, o que eu considero uma forma extraoficial de autolicenciamento. É preciso lembrar que o então secretário estadual de Meio Ambiente, Germano Luiz Vieira, que comandou aquela operação, foi o único da gestão de Fernando Pimentel a ser mantido pelo governador Romeu Zema (Novo)”.

No entanto, se as mudanças propostas forem efetivadas, ele defende que os estados e municípios ampliem seus quadros técnicos e órgãos específicos, os quais hoje são quase inexistentes. Como acontece na maioria dos casos, as estruturas que tratam da proteção e conservação do ambiente são anexadas a outros pastas, e, muitas vezes, sem quadros e orçamentos suficientes para funcionar com um mínimo de eficiência.

O professor da UENF teme que a descentralização dos processos de licenciamento e fiscalização sem que sejam estabelecidas obrigações para os entes federativos, a proteção ambiental ficará totalmente negligenciada, causando problemas de ordem sanitária e o total desequilíbrio ecológico. “Não estamos mais no século 18, quando as atividades de mineração eram realizadas sem o menor cuidado com a proteção do ambiente e com as populações que vivem no entorno das jazidas exploradas. Hoje há suficiente conhecimento acumulado para demonstrar que esta é uma das atividades que geram os maiores passivos ambientais e sociais. Por isso, há que se pensar em um modelo de desenvolvimento econômico que gere maior harmonia entre economia e o bem-estar da população, e não um que nos coloque de volta no século 18”.

Quanto à responsabilização dos governos petistas por Salles, Pedlowski entende que o ministro Ricardo Salles, de maneira conveniente, parece ter esquecido que o PSDB teve mais tempo de mandato em Minas Gerais do que o PT. E que ele próprio ocupou cargo de secretário estadual do Meio Ambiente no governo tucano de Geraldo Alckmin (PSDB). E lembra que por causa da sua atuação em prol das mineradores enquanto ocupava o cargo de secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, Ricardo Salles foi condenado por improbidade administrativa – motivo pelo qual ele nem deveria estar ocupando o cargo caso os critérios aplicados ao governo de Dilma Rousseff tivessem sido mantidos.

Para ele, o ex-governador Fernando Pimentel (PT) desperdiçou uma “excelente oportunidade” de começar a reconstruir o sistema estadual de proteção ambiental, literalmente desmontado por uma sequência de governos do PSDB.

“Em vez de se dedicar ao estabelecimento de formas social e ambientalmente menos destrutivas para as atividades de mineração, avançou ainda mais no enfraquecimento e na precarização dos mecanismos de comando e controle, que seriam fundamentais para superar o status quo estabelecido pelos governos tucanos. Além disso, em especial no caso de Mariana, o que se viu foi um alinhamento inaceitável com as mineradoras, sendo que a primeira entrevista concedida por Fernando Pimentel foi exatamente na sede da Samarco”.

Há crítica também ao que chama de “ação inexplicável” da então presidenta Dilma Rousseff, de receber no Palácio do Planalto os dirigentes da Samarco, Vale e BHP, envolvidas no caso de Mariana. “Foi um dos episódios mais constrangedores de que tenho memória em relação à submissão de autoridades constituídas aos interesses das corporações que vivem da exploração de minério no Brasil”.