“Pacote anticrime de Moro foi mal redigido de propósito”, diz criminalista

Atualizado em 13 de fevereiro de 2019 às 15:22

Publicado no Brasil de Fato

O ministro da Justiça, Sérgio Moro — Foto: Valter Campanato / Agência Brasil

Assim que veio a público, o anteprojeto de Lei “Anticrime” elaborado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, gerou críticas por parte de especialistas e juristas. Advogado criminalista e professor de Direito Penal, Fernando Hideo Lacerda elaborou um estudo preliminar, disponível gratuitamente ao público, no qual elenca avaliações dos possíveis efeitos dos diversos setores da proposta do ex-magistrado da operação Lava Jato.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Lacerda critica a ambiguidade da redação das alterações formuladas por Moro, que, segundo ele, permitiriam aplicação subjetiva e arbitrária por parte dos operadores do sistema de Justiça criminal: “Tem uma péssima redação, mas muito do que é ruim é ruim de propósito. É intencionalmente ruim para deixar ambíguo e aberto”, diz.

Parte dessa ambiguidade, prevê Lacerda, poderá ser utilizada contra organizações populares, ou “qualquer reunião de pessoas que sejam inconvenientes para a racionalidade neoliberal”. Confira abaixo.

Brasil de Fato: O anteprojeto teve reações imediatas. Muitos dizendo que o projeto não resolverá as causas reais da crise na segurança pública. Outros ainda dizendo que o projeto não muda nada de fato. Qual sua avaliação geral das propostas de Moro?

Fernando H. Lacerda: Não é só que ele não melhoria a questão da violência, que ele não evitaria crimes. É pior: ele estimularia a prática de crimes. Ele têm dois princípios básicos. O primeiro é prender mais. Prender o maior número de pessoas, pelo maior tempo possível, de forma mais rápida. O outro pilar é o aumento da violência policial.

Esses dois pontos contribuirão para o aumento da violência. Porque prender mais significa prender jovens pobres que passam a ter uma convivência no meio das organizações criminosas. Não é segredo para ninguém que nossos presídios são dominados pelas facções criminosas. É dar mão de obra para as organizações.

Em segunda lugar, a polícia vai matar mais e vai morrer mais. Mais do que já morre e mais do que já mata. Com a ampliação da legítima defesa, pode se ter certeza que vai morrer muito mais policial e muito mais pessoas em confronto com policial.

Tem gente que diz não vai mudar nada, que vai mudar muito pouco. [Eu acho que] se fosse seguir o que está escrito na redação do projeto, pouca coisa mudaria. Mas, hoje em dia, a gente vive o tempo das medidas de exceção que importa muito mais a intenção não declarada explicitamente do que o texto legal. Mesmo sem aprovar o projeto de lei, já aumentou a violência policial. Já aumentou a letalidade. As pessoas já sentem confortáveis. Os próprios governadores de São Paulo e Rio de Janeiro [sentem isso]. Muda a mensagem transmitida com esse simples aceno.

A gente tem que estudar o projeto, mesmo que seja algo técnico temos que levar as consequências para as pessoas, e as consequências são claras. É tudo uma grande falácia, um jogo de aparências.

Uma das críticas que surgiram ao anteprojeto é a previsão de plea bargain. Faz sentido importar um instituto que já é contestado nos EUA para um sistema completamente distinto como o nosso?

Na prática, seria a própria eliminação do devido processo legal. São sistemas jurídicos completamente diferentes. Nosso ordenamento é pautado na lei. O ordenamento norte-americano, assim como todo país com direito de matriz anglo-saxã, é pautado na tradição. É um sistema construído pela tradição e jurisprudência [termo jurídico que designa decisões sobre interpretações das leis feitas pelos tribunais]. São coisas totalmente diferentes e não se pode simplesmente transplantar um instituto como o plea bargain, que já não funciona lá.

Se você olhar dados dos EUA, mais de 90% dos casos são resolvidos em acordos, e em acordos com imposição de prisão. Não tem processo legal. Vira uma justiça na base da troca. Mas lá os promotores são responsabilizados. Se eles levarem alguém a julgamento injustamente, eles perdem o cargo. É outro sistema de legitimação dos promotores. Aqui não, o plea bargain vai representar um aumento da seletividade penal. Quem tem bons advogados pode acabar se beneficiando disso, com acordos vantajosos. A grande maioria que sempre foi vítima do sistema de justiça criminal, vai sofrer as consequências.

Seria o mesmo caso das novas hipóteses de confisco?

Essa ampliação das hipóteses de confisco serve como uma eliminação do devido processo legal. Você cria uma figura surreal. Vai tomar todos os bens da pessoa até que ela comprove que os bens sejam de origem lícita ou compatível com seu rendimento.

O ônus da prova é da acusação. Eu, acusação, tenho que demonstrar. No caso da reforma, o Ministério Público aponta, confisca e cabe ao réu demonstrar. É a inversão total do processo. E ainda se cria a possibilidade do próprio órgão de Segurança Pública que efetuou busca e apreensão ficar como bem. Hoje em dia, é apreendido, com a condenação se efetiva, vai a leilão é o dinheiro vai para a vítima ou para o Estado.

Um ponto que seu estudo levanta é a de possível criminalização de organizações populares. Onde você vê isso no anteprojeto?

Um dos pontos centrais que ainda foi muito pouco explorado foi a alteração do crime de organização criminosa. Hoje, exige a reunião de quatro ou mais pessoas para cometimento de crimes com pena superior a quatro anos ou de caráter transnacional.

A redação que ele propõe – citando PCC, Comando Vermelho, milícias – é um cavalo de Troia. A redação tira a exigência da prática de crime com pena de quatro anos, a única exigência é ter quatro ou mais pessoas que estão se valendo da “força de intimidação do vínculo associativo”. O que é isso? É muito abstrato. “Para obter controle sobre atividade criminal ou sobre a atividade econômica”. Em sentido estrito, estão até criminalizando a atividade das multinacionais. Coloca em risco sindicatos, partidos políticos, mas principalmente movimentos sociais. Nesse ponto eu vejo muito risco para a banalização do crime de organização criminosa para qualquer reunião de pessoas que sejam inconvenientes para a racionalidade neoliberal.

Essa questão não recai nas avaliações de que o anteprojeto tem péssima redação jurídica? Ou é algo intencional?

Tem os dois elementos. Tem uma péssima redação, mas muito do que é ruim é ruim de propósito. É intencionalmente ruim para deixar ambíguo e aberto. Quanto mais aberto, mais vago o conceito, maior a discricionariedade do agente do sistema de justiça manipular conforme seus interesses.

São coisas mal redigidas, mas muitas vezes com o intuito de serem mal-redigidas.

Você também fala em possível brechas que levariam à impunidade de aliados políticos. Onde há esse potencial no anteprojeto?

Essa é uma questão mais técnica. Por algum motivo se descobriu que uma empresa X transferiu dinheiro para o político Y. Vimos um monte de casos desse jeito. Algumas das vezes o sistema encara isso como corrupção. Qual foi a contrapartida? Não importa. Esse foi o caso do ex-presidente Lula. Atos de ofício indeterminados. Para outros cenários, idênticos, o cara fala: esse dinheiro foi para campanha. Em alguns casos é corrupção, com pena grave, padrão Lava Jato e, para outros, é caixa dois, um crime com pena mínima que permite até acordo de suspensão do processo. Para o inimigo, joga na caixinha da corrupção, para os amigos, joga na caixinha do Código Eleitoral.

Esse projeto amplia as hipóteses do caixa dois. A redação atual do caixa dois, é uma espécie de falsidade: omitir na declaração algo que deveria constar. Para o senso comum, se ele está ampliando o caixa dois ele está querendo punir mais pessoas, ou mais condutas. O que eu tento observar é que nem sempre pode ser assim, pode ser que ele esteja mirando um conjunto de condutas que configurariam corrupção, ou ficariam em um zona de penumbra. A ampliação do caixa dois pode significar o esvaziamento do crime de corrupção [para os amigos].

Edição: Mauro Ramos