O leitor do DCM consegue imaginar um trabalhador rural brasileiro típico, mal remunerado, exposto a todo tipo de intempérie climática, com expectativa de vida bem menor que a de um trabalhador urbano, contribuindo ao longo de 20 anos para a Previdência Social para, depois disso, passar a gozar de merecida aposentadoria?
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes conseguem, tanto que o projeto de reforma da Previdência que enviaram ao Congresso, com pompa e circunstância, iguala trabalhadores rurais e urbanos quanto ao tempo mínimo de contribuição exigido para aposentadoria.
“Igualar o tempo mínimo de contribuição do trabalhador rural ao do trabalhador urbano é complicado. São realidades diferentes. O trabalhador do campo não vai conseguir contribuir por 20 anos”, afirma o economista Nélson Marconi, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Essa maldade não está sozinha no projeto Bolsonaro-Guedes.
Aprovada a versão original da PEC, o BPC (Benefício de Prestação Continuada), destinado a idosos sem condições de subsistência, só será pago integralmente (o valor hoje é de um salário mínimo) àqueles com idade a partir de 70 anos. Os idosos enquadrados no BPC com idade entre 60 e 69 anos receberão 400 reais mensais.
“Para o trabalhador do campo, mais uma vez, a situação é muito diferente da do sujeito que trabalha no ar condicionado. Vai ser muito puxado. Você pegar um cara de 70 anos que trabalha num escritório é uma coisa, mas o cara que cai no BPC não é o cara do escritório”, analisa Marconi.
Nem se fale do tempo que o trabalhador terá de contribuir para obter aposentadoria integral – 40 anos, pelos cálculos do próprio governo. “Como é que uma pessoa vai contribuir para a Previdência durante por 40 anos num mercado de trabalho cada vez mais informal?”, indaga o economista.
O professor da FGV é assessor econômico de Ciro Gomes desde a campanha presidencial, e desde então o grupo do político cearense tem defendido a reforma da Previdência – mas não como proposta por Bolsonaro-Guedes. Até mesmo um regime de capitalização é aceito pela equipe de Ciro, desde que adotado a partir de determinada faixa de renda – não de alcance geral – e que contemple contribuições de empregado e empregador.
Paulo Guedes defendeu inúmeras vezes o regime de capitalização, e tantas outras disse que este não constaria em detalhes no que chamou de “primeiro momento” da reforma. De fato, a capitalização consta da PEC apenas como prenúncio de Lei Complementar, sumariamente, no Artigo 201-A.
“Algumas coisas essenciais sobre a capitalização, que será objeto de Lei Complementar, teriam que estar no projeto. Tem que dizer quem vai financiar. O que eles querem? Um cheque em branco? Nós até concordamos com a capitalização, mas não vamos passar um cheque em branco, em hipótese alguma”, avisa Nélson Marconi.
A progressividade das alíquotas de contribuição para Previdência, tanto para servidores públicos quanto para os da iniciativa privada, como consta na proposta do governo, é elogiada por Marconi. O princípio de que “quem ganha mais paga mais” é básico nos países que se preocupam com justiça social. Mas esse pequeno surto “esquerdista” de Bolsonaro-Guedes deveria vir acompanhado, por exemplo, da cobrança efetiva dos grandes devedores da Previdência Social – a dívida de empresas públicas e privadas, bancos, fundações, governos estaduais e prefeituras com o INSS chegou a 477 bilhões de reais em 2018.
O ponto mais criativo da PEC Bolsonaro-Guedes, contudo, é outro. O capitão e o Chicago boy propõem livrar empregadores de pagarem a multa de 40% sobre o FGTS a empregados aposentados, que ainda estejam trabalhando, quando estes forem demitidos. A esperança é que, de tão aberrante, a medida seja derrubada do projeto pelos parlamentares.
“Não há fundamento legal para fazer um negócio desse, um absurdo completo. Se sujeito está aposentado, mas está trabalhando e recolhendo seu Fundo de Garantia, qual a justificativa para ele não receber a multa rescisória prevista na lei?”, indaga Nélson Marconi.
O economista esquece que se justificar não é uma das preocupações do governo.
A reforma da Previdência está sendo tocada a toque de marketing.