Publicado originalmente no Público.pt
POR ALEXANDRA PRADO COELHO
“Os gangsters tomaram o poder no Brasil”, diz o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. E isso tem, naturalmente, consequências graves para as comunidades indígenas. “É uma situação tipo 1984 do [George] Orwell, você coloca o maior inimigo do meio ambiente como ministro do meio ambiente, o maior inimigo dos direitos dos indígenas como responsável pela Funai [Fundação Nacional do Índio. O Governo inteiro é montado nesse princípio: quem é a pior pessoa possível para este lugar?”.
Viveiros de Castro era já muito crítico dos governos anteriores do Partido Trabalhista de Lula da Silva e Dilma Rousseff também na forma como encaravam a questão indígena, mas agora vê uma diferença substancial. “Perto do actual Governo [de Jair Bolsonaro], aqueles eram o paraíso – e eu já os achava muito ruins pela total incapacidade de imaginar uma outra via de desenvolvimento que não fosse a do crescimento económico às custas da natureza, das terras públicas, dos modos de vida que não estão alinhados com a sociedade de consumo e com esse ideal de classe média para todos.”.
O antropólogo vê uma diferença básica na postura de uns e dos outros. “Se os anteriores eram ruins na área ambiental e dos direitos dos indígenas, era mais por omissão, por incompreensão, por uma certa tacanhez ideológica, uma certa miopia, os actuais são pessoas que têm como objectivo acabar com os índios. Acabar mesmo, rever as demarcações, privatizar as terras, catequizar os índios.”.
A crítica que se pode fazer ao PT, diz Viveiros de Castro, é a de que não entendem – “não entendem a questão indígena, o que a Amazónia vale, não entendem que esse modelo de desenvolvimento é uma cópia grotesca do dos Estados Unidos e que não é para funcionar aqui”. Já com o actual Executivo, a situação é outra: “Vocês sabem muito bem o que estão fazendo e são assassinos.”.
Se Bolsonaro e a sua equipa terão ou não meios para levar até ao fim essa agenda, não sabe ainda responder. “Esperamos que não mas até agora estão fazendo exactamente tudo o que disseram que iam fazer, ou pior. Cada dia aparece uma notícia mais sinistra, parece que você está num filme de terror – querem privatizar 100% das terras, acabar com os índios, com os quilombolas, retirar direitos à população mais pobre.”
Identifica neste Governo duas pernas, “de um lado o neoliberalismo mais extremo, mais radical, e do outro o obscurantismo ideológico do fundamentalismo evangélico pentecostal que vê os índios como pecadores, acha que xamã é coisa do diabo, e é ele quem manda missionários para todas as áreas indígenas.”.
Apesar disso, mantém um certo optimismo. “O líder indígena Ailton Krenak falou uma coisa bastante sensata. [Disse que] este Governo é terrível mas a gente está preocupada com vocês, brancos, porque nós, índios, estamos vivendo isso há 500 anos, estamos acostumados, vocês é que não estavam, coitados. Estamos solidários com vocês, com pena dos brancos bons, mas a gente vai escapar desta, passámos 500 anos escapando disso.”.
No centro de tudo está a questão da posse da terra. “Os índios não são mais importantes como mão-de-obra. O que importa é a terra e no Brasil as terras indígenas são da União, são públicas, e existe hoje, absolutamente explícito, o projecto de privatizar 100%, se possível, todas as terras públicas do Brasil para poderem ser comercializadas para o agro-negócio, para plantar soja, criar gado, explorar minério.”.
Claro que a relação dos índios com a terra é fundamental mas, lembra Viveiros de Castro, “a maior parte das terras indígenas estão na Amazónia e 60% da população indígena está fora da Amazónia, tem mais índios fora das terras indígenas do que dentro”. Na Amazónia “tem terras grandes com populações mais isoladas, mas acossadas por hidroeléctricas, por mineradoras, por garimpeiros, fazendeiros de soja, de gado, e essas vão sendo, a pouco e pouco, comprimidas.”
Ligada a esta surge a questão do estatuto do índio. “A Constituição brasileira de 1988 reconheceu pela primeira vez aos índios o direito de permanecerem índios.”. Isso foi uma conquista porque “toda a concepção da nacionalidade é que índio é um estado transitório, que eles vão deixar de ser índios. Havia estádios de integração: índio isolado, em contacto intermitente, em contacto permanente e integrado”.
Mas, afirma, “de 88 para cá há uma campanha concertada da direita para reverter todos os ganhos da Constituição, entre os quais o carácter permanente da condição indígena e o carácter colectivo dos direitos às terras indígenas.”. O que existe hoje no Brasil, na perspectiva de Viveiros de Castro, é “um projecto de reforma não explícita da Constituição para fazer a situação voltar ao statu quo anterior a 88”. E, conclui, “antes de 88 é, mais coisa menos coisa, a ditadura”.