Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)
POR WALTER CENEVIVA, advogado
A ConJur publicou notícia sobre os recursos capturados pelas investigações dos crimes cometidos contra a Petrobras (“Operação “lava jato” se torna meio para que o MPF vire gestor bilionário”), pelo qual o Ministério Público Federal tenta “se tornar o gestor de um fundo bilionário”.
A transformação do MPF em arrecadador e gestor de dinheiros, fora do seu respectivo orçamento (LC 75/93, artigo 23), é, como diria Caetano Veloso, o avesso, do avesso, do avesso. Nestes estranhos tempos, de excesso de versões e falta de análise dos fatos, essa aberração monstruosa está tratada de forma discreta e meramente descritiva pela mídia. Mas o Ministério Público auferir recursos, como decorrência do cumprimento de sua própria missão institucional constitucional, é um escárnio que precisa ser estancado.
As atribuições do Ministério Público Federal estão contidas na Constituição (artigos 127 a 130) e incluem a defesa do patrimônio nacional, dentre outras. Para consecução dessa missão, a Constituição dá ao membro do Ministério Público uma série de garantias, maiores ainda do que as das demais carreiras de Estado (assim chamadas as carreiras que dizem respeito à existência do Estado brasileiro, e que transcendem aos governos que se sucedem): seu cargo é vitalício (não podem ser demitidos), e são inamovíveis, ou seja, só trocam de cidade ou região se assim o desejarem.
Tais garantias são necessárias para que os membros do Ministério Público possam agir sem medo de retaliações ou perseguições dos criminosos.
Todavia, no caso de proteção da Petrobras, um patrimônio nacional, o MPF desviou-se de seu objetivo, de maneira grave; a sociedade não pode tolerar tal desvio. Por óbvio que pareça, é preciso lembrar: a Petrobras é a vítima, é a entidade que demandava proteção contra os criminosos que a tomaram de assalto (funcionários, fornecedores, políticos etc.). Mas as ações que investigaram cartéis, corrupção e tráfico de influência na estatal do petróleo geraram perdas incomensuráveis à própria empresa.
E, pior, tais perdas foram causadas, entre outras, pela atuação do Ministério Público Federal, como braço operacional do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ).
O próprio Departamento de Justiça do governo americano divulgou press release, em 26 de setembro de 2018, para informar à sociedade americana e ao mundo que impusera à Petrobras um pagamento de US$ 850 milhões, para encerrar investigações contra a empresa brasileira por supostos prejuízos a investidores no mercado de capitais americano. Meses antes, a própria Petrobras já havia pago US$ 2,95 bilhões aos investidores do mercado americano.
Ora, se agentes privados perderam dinheiro em seus investimentos (tema polêmico, seja pelo desempenho da empresa no mercado, nos anos seguintes, seja porque tais investidores aceitaram que questões jurídicas fossem julgadas por arbitragem no Brasil), esse problema, claramente, não diz respeito ao Ministério Público Federal. O MPF não é tutor de capitalistas estrangeiros, mas, sim, o curador da Petrobras, enquanto patrimônio nacional.
E qual a relação do MPF com as ações (e sanções) do governo americano contra a Petrobras? É plena: como se vê do agreement assinado pela Petrobras com o DoJ, em setembro de 2018, a cooperação do Ministério Público Federal foi decisiva para comprometer a Petrobras e obrigá-la à rendição, perante investidores americanos. O press release do DoJ cita o MPF, nominalmente. Mas a explicitação definitiva da participação do MPF contra o patrimônio nacional, em benefício de governo estrangeiro e de capitalistas estrangeiros, está no recém-publicado “Acordo de Assunção de Compromissos, firmado entre Ministério Público Federal e a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS, relacionado ao Non Prosecution Agreement entre Petrobras e DoJ e à cease-and-desist Order da SEC”, ipsis litteris o nome do acordo que fez do MPF o “gestor bilionário” mencionado na notícia da ConJur.
Esse acordo diz com todas as letras: está cumprindo o estabelecido pelo DoJ. Além disso, diz corresponder a pelo menos 25 acordos de cooperação do MPF com o DoJ. Com o acordo, a vítima (a Petrobras) paga ao MPF R$ 2,5 bilhões, como uma espécie de “comissão”, que o MPF recebe do DoJ, por seus valorosos serviços a favor de capitalistas americanos, em detrimento da vítima, a Petrobras. Como dissemos, é o avesso, do avesso, do avesso…
Caberia ao MPF assegurar a jurisdição brasileira para qualquer questão relativa a investimentos na Petrobras; deveria, ainda, assegurar que eventuais indenizações fossem pagas não pela Petrobras, mas pelos verdadeiros criminosos (funcionários, fornecedores, partidos políticos etc.); e, ao fim e ao cabo, deveria se satisfazer com o adimplemento de seu dever constitucional. O MPF jamais poderia receber dinheiro da vítima! Nunca, em caso algum.
É revelador que, a despeito das referências anglófonas a compliance (mais um indicativo da submissão ao Estado estrangeiro), o Acordo de Assunção de Compromissos é subscrito, de um lado, por uma poderosa “força-tarefa” (13 procuradores da República) e, de outro, por uma solitária gerente da Petrobras. Não se pretende diminuir o valor da profissional que subscreve o documento, mas, quando uma gerente obriga à Petrobras, com uma só assinatura, no montante de mais de R$ 3 bilhões, claramente as regras de boa governança foram violadas.
Cabe à sociedade refletir sobre o papel de suas instituições e cobrar delas o desempenho do que lhes caiba. Cair no conto da guilhotina, acreditar nos simões bacamartes, é uma infantilidade que a sociedade brasileira do século XXI não deve cometer.
O dinheiro é da vítima, a Petrobras, e com ela deve permanecer.