Os camponeses torturados pela ditadura no Brasil merecem respeito e indenização. Por Ana Maria Oliveira

Atualizado em 1 de abril de 2019 às 18:42
Os camponeses do Araguaia reunidos em Brasília para defender seus direitos

Fui designada Conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça do Brasil após a edição da Lei 9.504 de 2002, quando Dr. Marcelo Lavenère exercia a presidência.

Trabalho pro bono, de relevantes serviços prestados ao povo brasileiro ao país, e a democracia, dedicado à memória,  verdade e justiça, o tripé da Justiça de Transição. Dar voz aos que lutaram pelas liberdades, conceder reparação pelas violações sofridas e pedir desculpas em nome do Estado Democrático de Direito pelo arbítrio cometido pelo estado de exceção, tudo isso foi, sem duvida, um dos melhores trabalhos da minha vida.

O golpe civil-militar de 1o. de abril de 1964 produziu, em 21 anos, violações transgeracionais e, depois de 55 anos, as atitudes do atual  governo continuam produzindo graves violações aos direitos humanos, com a falta de respeito às vitimas, especialmente os camponeses, sobre os quais me debrucei com maior atenção.

Falo dos camponeses do Araguaia, sul do Pará, meu Estado. E do Grupo dos Onze, nos Estado do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A Guerrilha do Araguaia é de todos conhecida, pela produção de vasto material que incluem livros, filmes, reportagens que podem ser vistos numa busca nos sítios da internet.

Pouco conhecida é a ditadura na vida dos camponeses. Os relatos são dramáticos. Acusados de proteger os guerrilheiros, paulistas, povo da mata, como eram conhecidos os militantes do PCdoB, os camponeses, pobres e analfabetos, nem sequer sabiam o que estava acontecendo no país, sem comunicação, pois não tinham rádio. Foram presos em buracos na base da Bacaba em Marabá, torturados com diversos métodos, inclusive ficando horas de pé na lata de leite moça, compelidos a guiar na mata os militares.  O mais perverso foi a expulsão das terras que ocupavam, a violência contra as mulheres e o sequestro e adoções ilegais de crianças, este último investigado pelo jornalista Eduardo Reina.

As famílias foram expulsas da terra sem direito a colher o que plantavam e sem poder levar seus pertences e não puderam mais retornar. Após o encerramento das ações dos militares na região, as terras foram VENDIDAS para fazendeiros. Obrigados a viver na periferia das cidades da região, foram submetidos à discriminação de toda ordem, acusados de ajudar terroristas. Imaginem-se os efeitos discriminatórios em cidades pequenas do interior do Brasil.

Sem registro das ações dos militares ou da falta de abertura dos arquivos da repressão,  são poucos os camponeses que conseguiram anistia por falta de provas da perseguição e do largo espaço de tempo passado. Os que conseguiram tiveram seus processos contestados em juízo por um advogado da família do atual presidente do Brasil, inclusive recém-nomeado Conselheiro da Comissão de Anistia.

A violência contra as mulheres é um tema invisibilizado. Seja pela vergonha que as mulheres violadas carregavam, às vezes como culpa, já que muitas delas eram casadas, seja pela banalização e do machismo repressor e violento que considerava e ainda banaliza a violência. As mulheres foram multiplamente violentadas. Perderam suas casas, suas terras, seus filhos e foram sexualmente violentadas, inclusive podem ter gerado filhos, fruto dessa criminosa violação.

O sequestro e adoções ilegais, denunciados por Eduardo Reina no livro Cativeiro Sem Fim, revelam outra face perversa da ditadura contra mulheres e crianças no Araguaia. Conheci Reina numa viagem que fiz a Marabá. Na ocasião, a Comissão da Verdade do Estado do Pará, em caravana, ouvia os camponeses e seus descendentes. Revelou, na ocasião, que estava investigando, com fortes evidências, que crianças foram sequestradas na região. Crianças a quem foi negado sua história de vida, os traumas que carregam quando descobriram que seus pais, os de criação, são torturadores, e seus verdadeiros pais foram os que lutaram pelas liberdades. É certo afirmar, por ter ouvido de vários filhos dos perseguidos, que as crianças sofreram graves violações de direitos humanos. Vivendo na clandestinidade, sem nome dos pais na certidão de nascimento, tachados de filho de comunista, excluídos da família, da escola e dos amigos.

O Grupo dos Onze, ditos como amigos do então governador Leonel Brizola, como ficaram conhecidos, a maioria camponeses do interior do sul do Brasil. Com pouca organização capaz de fazer face ao regime, a maioria sem a consciência do momento politico, sem armas, muitos alegavam, inclusive, que não sabiam o que era comunismo,  porém sofreram implacável perseguição.  Presos, torturados e socialmente discriminados, já que viviam em municípios pequenos, muitos saíram clandestinos do país rumo à Argentina e Uruguai. Perderam suas terras, comércios, inclusive suas famílias, que não puderam acompanhá-los.

Os ditadores prendiam, sequestravam indiscriminadamente os homens, sem registro. Semelhantes aos camponeses do Araguaia, os processos de anistia não têm provas suficientes para a concessão. Porém, a luta deve ser que a prova seja o ônus do Estado violador, que criou um inimigo, atacando-o com violência brutal, o homem do campo.

É uma falácia o discurso dos que defendem o arbítrio, dizer que o golpe foi pedido pela sociedade contra o avanço do comunismo e que somente os comunistas foram perseguidos. Os camponeses, assim como os índios, sofreram violação de direitos humanos básicos e fundamentais.

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Ana Maria Oliveira é advogada e ex-conselheira da Comissão de Anistia.