Publicado originalmente no blog Escreva Lola Escreva
POR LOLA ARONOVICH, blogueira feminista
O assunto nas redes sociais ontem era a condenação do reaça misógino, racista e homofóbico Danilo Gentili a seis meses e 28 dias de prisão em regime semiaberto por injúria à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).
Em 2016 o reaça disfarçado de humorista publicou vários tuítes contra a deputada, como faz cotidianamente contra mulheres em geral (euzinha, a deputada Sâmia Bonfim, a youtuber Alexandra Gurgel, entre inúmeras outras). A intenção é sempre a de divulgar sua ideologia de direita contra ativistas e de atiçar seus milhões de seguidores a atazarem a vida de mulheres que trabalham e não têm medo. Maria do Rosário então pediu, via notificação extrajudicial, que Gentili apagasse os tuítes com insultos chamando-a de falsa, cínica e nojenta.
Qual foi a reação de Gentili? Um vídeo que quase todo mundo viu: alegando que paga o salário da deputada e que pode dizer o que quiser, ele rasgou a notificação, a esfregou nas suas partes íntimas, por baixo da calça, e concluiu, num show de misoginia: “Maria do Rosário, chegando minha cartinha, abre ela, tira o conteúdo, sinta aquele cheirinho do meu saco e abra a bunda e enfie bem no meio dela tudo isso aí que eu estou mandando agora pra você”.
Nada de muito chocante pra quem já fez “piada” discordando de Jair Bolsonaro e dizendo que a deputada merece sim ser estuprada.
A juíza Maria Isabel do Prado, que decidiu pela condenação criminal de Gentili, justificou que a intenção do comediante não era humorística, e sim de insultar e humilhar. Ao receber a notificação, segundo ela, ele “poderia simplesmente ter discordado ou ter buscado a orientação jurídica de advogados para acionar pelo que entendesse ser seu direito”, mas optou por gravar um vídeo “altamente reprovável e ofensivo”.
Alguma dúvida que esta juíza já deve estar recebendo ameaças de morte e estupro desde anteontem? A lógica é a mesma. Não tem a ver com humor. Tem a ver com misoginia, com poder e humilhação, com subjugar as mulheres.
É óbvio ululante que Gentili não vai passar nem um minuto na cadeia. A pena será substituída por prestação de serviços comunitários e multa. Mas, se mantida a condenação, ele ao menos não será mais réu primário. Já é alguma coisa pra quem goza da impunidade faz tanto tempo. Por outro lado, a condenação está lhe dando muita publicidade. As buscas por seu nome no Google aumentaram 4.000% nas últimas 24 horas. E ele, assim como o presidente dele, é adepto do “falem mal mas falem de mim”.
Gentili tem um longo histórico de atacar minorias. Seu humor não é o de criticar poderosos, muito menos o sistema, e sim de xingar ativistas e pessoas comuns. Em 2012, por exemplo, Thiago Ribeiro, um jovem redator negro, fez um vídeo em que juntou vários momentos racistas do humorista. Gentili lhe mandou um tuíte: “Sério, vamos esquecer isso… Quantas bananas vc quer pra deixar essa história pra lá?”.
Imagino que agora em 2019 isso seria interpretado como racismo, mas, cinco anos atrás, a 10a Vara Criminal da Justiça de SP absolveu o humorista porque não houve “intenção de ofender a vítima”.
Ah sim, tem mais um detalhe: Gentili, este defensor incansável da liberdade de expressão, conseguiu tirar o vídeo de Thiago do ar.
Em 2013, Gentili fez piadas no seu programa de TV contra a maior doadora de leite do Brasil, Michele Maximino. Michele era uma mulher comum, casada, mãe de dois filhos, conservadora até, habitante de uma cidadezinha em Pernambuco, mas ela todos os dias dirigia 80 km para levar seu leite materno a Caruaru. Sua doação diária era responsável por 90% do banco de leite do hospital de lá. Ela não ganhava nada com isso, fora a certeza que fazia a coisa certa de ajudar outros bebês.
Gentili achou divertido mostrar fotos de Michele em seu programa, falar das “tetas” dela, comparar o leite dela ao “leite” de um ator pornô, fazer montagem com uma das fotos, transformando-a em “Leite da Moça”.
Michele passou a ser hostilizada na sua cidade com menos de 25 mil habitantes, apelidada de “vaca do Gentili”. Ela e a família tiveram que se mudar por virarem motivo de chacota. Ela processou Gentili, ganhou, ele recorreu o quanto pode, e agora em janeiro saiu a sentença definitiva: Gentili terá que indenizar Michele em 200 mil reais. O que deve representar, sei lá, metade do salário do humorista e apresentador em um mês?
Durante o processo da votação do impeachment de Dilma, em 2016, Gentili, para marcar seu posicionamento, achou engraçado questionar se a senadora negra e nordestina Regina Sousa (PT-PI) seria de fato senadora. “Senadora? Achei que fosse a tia do café”, deixando claro seu racismo nada enrustido.
A única ocasião em que Gentili pediu perdão por uma piada foi em 2011, quando escreveu um tuíte sobre os moradores de Higienópolis (onde há muitos judeus) serem contra o metrô no bairro (“Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”). A Band, sua emissora na época, sentiu a pressão dos patrocinadores e mandou ele se retratar.
No mesmo dia do tuíte odioso, Gentili obedeceu, e disse em seu Twitter: “Minha intenção como comediante nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público q não fosse alegria. Peço perdão se falhei nesse meu objetivo com a piada q fiz essa tarde. Me coloco a disposição da comunidade Judaica para me redimir”.
Nada de oferecer bananas a um negro que protesta contra racismo, ou de esfregar no saco a notificação de uma deputada mulher. Quando o alvo da piada é um grupo com poder econômico um pouco maior, a defesa da liberdade de expressão irrestrita some rapidinho.
E por falar em liberdade de expressão, dói ver a maioria dos humoristas — quase todos homens brancos e héteros — defendendo Gentili. Eles raramente defendem os alvosdas “piadas” do humorista, mas creem que o humor pode tudo, e que é censura condená-lo, ainda mais com uma sentença de prisão (imagino que eles saibam que Gentili não será preso, né?).
Também vi gente se manifestando contra o “punitivismo” de prender alguém, ainda mais alguém tão inofensivo. Bem, vejamos: um carinha que nunca matou ninguém — não estou falando de Gentili –, mas que faz fóruns anônimos festejando massacres e recrutando rapazes para cometê-los é inofensivo?
Ou é só liberdade de expressão? Ao ser acusado, ele não pode alegar que foi tudo uma piada? E se euofender alguém, chamando-o de estuprador, e, ao ser processada, fizer um vídeo rasgando e esfregando o papel nas minhas partes íntimas? Tudo bem? No processo, eu posso alegar que só estava brincando, que não foi minha intenção insultar?
Acho que quem reclama do “punitivismo” na condenação de Gentili sabe que o sistema que prende e tortura uma mulher pobre por furtar uma lata de leite condensado num supermercado é o mesmo que permite que não seja preso um senador gravado pedindo dinheiro pra empresário corrupto e dizendo que mataria o primo se o delatasse. É também o mesmo sistema que permite que um humorista que faz carreira perseguindo mulheres e negros tenha no máximo que pagar uma parcelinha de seu salário se porventura for condenado.
Ironicamente, o público de Gentili é o mesmo que quer que eu vá presa por defender a legalização do aborto (acho que é meio a meio: metade me quer presa, metade me quer fuzilada). É o mesmo que celebra quando sou processada por misóginos que me ameaçam de morte e estupro e fazem de tudo pra destruir minha vida (Marcelo, ou “Psy”, que passou cinco anos ininterruptos me ameaçando e atacando, e que finalmente foi condenado a 41 anos e está preso desde maio, já me processou duas vezes). Aliás, parte do público de Gentili é aquele composto por grupos neonazistas e misóginos que planejam e executam massacres em escolas e que veem o humorista como um dos seus.
Por que será que os piores cidadãos de bem do Brasil (entre eles o presidente fascista, que não deu um pio sobre a execução de um pai de família negro pelo exército, mas escreveu um tuíte se solidarizando com Gentili) identificam o stand-up bully como sendo da mesma trupe? Bom, em dezembro de 2015, quando o Profissão Repórter dedicou um programa à luta feminista contra os misóginos, chegando ao ponto de tentar entrevistar Marcelo, Gentili se posicionou. Não contra gangues que ameaçam mulheres e negros, mas contra mim — como se algum dos onze boletins de ocorrência que fiz foi por alguém ter me chamado de gorda.
Gentili tem um ódio todo especial por mulheres gordas (pode chamar de gordofobia, se preferir).
Se você já foi gorda alguma vez no seu passado, como é o caso da candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila, você será “zoada” pelo eterno “pior aluno da escola” (Gentili escreveu um livro glorificando o bullying. O livro virou filme com apoio da Lei Rouanet. Nossos impostos pagam campanha pró-bullying). Simples assim.
A deputada federal Maria do Rosário, provavelmente a mulher mais atacada do Brasil (fazem ataques orquestrados até à filha menor de idade dela!) há anos, é fina demais para comemorar a condenação de Gentili.
Mas eu festejo sim. É uma vitória coletiva de todas nós que somos frequentemente atacadas pelo humorista e seu séquito. E vale perguntar se Gentili mantém o que disse aos judeus ofendidos — “minha intenção como comediante nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público que não fosse alegria”. Qual é a alegria dessa gente em hostilizar mulheres, principalmente aquelas que não aceitam se calar?