PUBLICADO NO CONJUR
POR LENIO LUIZ STRECK
Defender as instituições do país não é privilégio da esquerda, centro ou da direita; é, em verdade, um dever de todo democrata que compreende que as instituições são condição de possibilidade da própria democracia. Veja-se o que diz — e cito um jornalista e não um jurista — Reinaldo Azevedo, na Folha, quando alerta sobre os “oportunistas que se aproveitam das prerrogativas da democracia para lhe mudar os códigos, de sorte que as garantias que o regime oferece se transformam em armas para solapá-lo”. Bingo, Reinaldo.
Concordo com Rei: nunca antes na história desse país apareceram tantos aproveitadores das prerrogativas da democracia… para usá-las contra… ela mesma. O jornalista, corretamente, refere-se ao debate sobre o STF, as críticas que a ele podem ser feitas e o problema do Contempt of Court(despise ou scarn) contra o tribunal.
Não tenho problema em apontar erros do STF. Ao contrário: penso que esse é o dever de uma doutrina autêntica. Nesse sentido, pois, sou insuspeito, bastando, para tanto, ver o Fator Julia Roberts, com o qual mostro o que devemos fazer quando a (ou uma) suprema corte erra.
Tribunais erram e acertam. Por exemplo, o STF errou no episódio da revista Crusoé. Tanto é que voltou atrás. Como errou quando firmou entendimento contrário ao princípio constitucional da presunção de inocência (HC 126.292). Por isso necessitamos que julgue, imediatamente, as ADCs 44 e 54. Como não é correto confundir papéis, por exemplo, de ministro e filósofo moral ou ministro e legislador. Sem esquecer que os “dois corpos do rei” (Kantorowicz) devem ser preservados.
Devemos ser coerentes. Pessoalmente, penso ser bastante seguro dizer que erra aquele que não age de acordo com aquilo que devia ter agido. Por isso, tenho reivindicado para o STF uma ortodoxia constitucional. Deve cumprir a sua função.
E qual é a função do Supremo? Bom, o Supremo ali está para respeitar e garantir o respeito à ordem jurídica. Para interpretar o texto constitucional e legislativo dentro dos limites semânticos impostos pelo Parlamento, devendo julgar inconstitucional textos contrários à Carta. Para, numa relação circular, garantir exatamente aquilo que lhe deu forma em primeiro lugar: o Rule of Law.
Parece que é exatamente isso que está por trás do processo de demonização da Suprema Corte do país. Há um desdém pelo Estado de Direito (adiante falo disso como Contempt of Court). Não fosse assim e não se veria tanta irresponsabilidade advinda de grupos e, para espanto, até de membros de instituições que deveriam zelar pelo rule of law.
Veja-se: aqueles que vão às redes sociais, sempre as redes sociais (a terrível neocarverna), com a “hashtag” #UmSoldadoeUmCabo assim o fazem quando um ministro concede um habeas corpus exatamente como mandam as garantias constitucionais. Ademais, vale frisar que o momento mais atacado da Corte foi nos 6×5 no caso da afirmação do foro da justiça eleitoral. No RS, queimaram bonecos de ministros, imitando Ku Klux Klan.
Porque o ponto é esse: se a campanha contra o Supremo fosse em razão de inobservância da lei e da Constituição, ela seria apenas apressada, precipitada. Isso já seria grave, porque não se distribui impeachment por aí como se distribui corrente de “Zap”.
Mas é ainda pior: a campanha é baseada em um, ou todos, desses três motivos: (i) acusações tão irresponsáveis quanto infundadas; (ii) efeito manada (neocavernas) e a busca por um inimigo para xingar e desqualificar; e, pior de tudo, (iii) quando o Supremo efetivamente cumprecom o que diz a lei e a Constituição, exercendo o papel contramajoritário que lhe cabe em um paradigma democrático.
Não para por aí. A quem interessa essa campanha difamatória contra o STF? A quem interessa fragilizar uma já frágil democracia?
Quem protege o STF de ataques? Como enfrentar Contempt of Court no Brasil?
É muito fácil criticar quando o Supremo tenta proteger a si próprio. Mas se uma democracia exige elementos que nos guardem dos guardiões — e sempre defendi que a doutrina assumisse esse papel —, ela também exige que os protetores sejam protegidos.
Quem protege o Supremo quando ele é alvo de uma campanha tão grave e difusa quanto a que está em curso? Eis a questão.
Se fosse simplesmente uma corrente de WhatsApp, bem… não gostaria de todo modo, mas c’est la vie. Democracia pressupõe conviver (até) com os imbecis. Mas não é.
Então, quem protege o Supremo quanto as acusações vêm de quem tem lugar de fala institucional e devia ter responsabilidade política? Por exemplo, quando um procurador da República diz que o Supremo tem uma “panelinha” que incentiva a corrupção? Quem protege o STF? Quando um senador, sentado onde não devia e dizendo o que não devia, acusa um ministro de “vender sentenças” [sic], quem protege o STF? Quando parlamentares pedem por impeachment de ministros com base em… em que mesmo? Nem eles sabem.
Bom, em uma democracia, quem guarda os guardiões e protege os protetores devia ser a própria democracia, que oferece um sistema de freios e contrapesos.
Felizmente, (ainda) vivemos em uma democracia. E Raquel Dodge, procuradora-geral, alvissareiramente, diz-nos que, no Brasil, vigora um sistema acusatório. Ótimo. Há que se espalhar a boa nova. Viva. E, atenção, há que praticar esse sistema acusatório. Aliás, penso que a doutrina, os advogados e os tribunais podem — e devem — passar a cobrar essa nova postura do MP.
Isto quer dizer que Dodge está certa, porque um sistema acusatório significa que o Supremo não pode concentrar em si próprio o papel tríplice de vítima, acusador e julgador.
E aqui entra um “todavia”…
Mas, porém, contudo, todavia… como em tudo na vida, you can’t have it both ways. Não se pode ter tudo. Se é verdade que o sistema é acusatório — e é; se é verdade que o Supremo deve observar o papel que lhe cabe e não o ultrapassar — e é; também é verdade que o Ministério Público deve igualmente cumprir o papel que lhe cabe.
Ou seja, se Dodge está certa, ela também está…errada, ao não fazer a Procuradoria Geral da República — que possui parcela da soberania estatal — exercer seu papel de guardar a relação entre os Poderes e resguardar o STF de detratores, já que ele, STF, não pode se defender de ofício. Aliás, Dodge errou — e isso foi lembrado aqui por Serrano e Bheron — quando, ao dizer que o STF não pode abrir investigação de ofício, não suscitou a não-recepção do artigo 43 do RISTF. Eis o busílis.
Surge-me a alegoria: O STF está sendo atacado e o MP fica arrumando o quadro de Van Gogh na parede (faço alusão a uma antiga história: as lavas do Vesúvio desciam e parte dos habitantes de Pompéia ajeitava os quadros que se moviam face ao tremor do solo — dizem que ainda hoje dá para ver a figura de um homem petrificado… no momento em que arrumava o quadro).
Ora, não pode, por exemplo, um procurador ignorar a responsabilidade política que lhe impõe o cargo e, lavajatisticamente, dizer ou insinuar (mesmo que diga sem dizer: o não dito, às vezes, é até pior) que o Supremo é corrupto, fazendo o favor de ecoar e conferir sentido às irresponsáveis acusações de irresponsáveis parlamentares.
Cabe ao Ministério Público respeitar o sistema acusatório, aliás, sistema esse que postula quando lhe convém (antes de a Dra. Dodge esgrimir a defesa do sistema acusatório, não lembro de ter visto, oficialmente, o MP defender essa tese) e investigar quando a “liberdade de expressão” é degradada em nome de uma campanha difamatória; quando membros da própria instituição esquecem que têm o papel de reforçar a democracia e não o contrário.
Portanto, no jogo dos diversos erros e acertos, todas as instituições devem cumprir suas funções. Não mais do que lhes cabe. Mas também não menos também.
Repito: Se Raquel Dodge está certa, está errada, na medida em que, dizendo claramente que o STF não pode instaurar inquérito, ao mesmo tempo deixa a Suprema Corte sem possibilidade de se defender dos ataques. E não se diga que cabe ação subsidiária. Serrano, Bheron, Aury, Alexandre Rosa (aqui) e eu já falamos e destrinchamos isso.
O que o STF pode fazer em casos de Contempt of Court, cuja etimologia é construída a partir de despise (desprezo), scarn (escárnio, nojo) ou disdain (desdém)? Pois é. É isso que quer dizer Contempt of Court. Esse é o busílis da questão.
Ora, Dodge, sabendo disso, deveria, exatamente, como chefe da instituição que deve funcionar como guardião de todos os Poderes, fazer o enfrentamento direto e imediato do desprezo (Contempt) e ataques ao STF. Chamem o guardião: o MP. Ou não.
Se você, leitor de boa-fé e com apreço pela democracia, não for capaz de fornecer elementos legítimos e robustos que fundamentem esse tipo de campanha contra a Instituição Supremo Tribunal Federal, muito cuidado; muito cuidado para não servir de instrumento àqueles que sabem da inexistência de elementos legítimos e robustos que fundamentem esse tipo de campanha… mas que não compartilham de sua boa-fé e seu apreço pela democracia.
A quem interessa fragilizar uma instituição que é condição de possibilidade do Estado de Direito, da democracia no Brasil? É a pergunta que fica. Um grupo de 500 advogados firmou um manifesto de apoio à Suprema Corte (ler aqui). Minha tese: em um país de um milhão de advogados, no mínimo quinhentos mil causídicos deveriam firmar tal documento. É como falar em democracia: ela tem problemas? É? Há algo melhor? Assim é o papel de uma Corte Suprema nos contemporâneos Estados Democráticos.
Post scriptum: a importância do constrangimento doutrinário
Trago aqui outra palavra que é, afinal, uma tecla na qual venho batendo há anos: constrangimento. Esse é o ponto. Se as democracias, para que sobrevivam, precisam de accountability institucional, o controle externo deve ser exercido por meio de um constrangimento epistemológico (eu cunhei a expressão, e coloquei isso em verbete em meu Dicionário de Hermenêutica); novamente traduzindo em miúdos, o constrangimento epistemológico é aquilo que se dá quando a comunidade em questão diz que… não pode ser assim.
Constrangimento significa que, em uma democracia, não se diz qualquer coisa sobre qualquer coisa. Há limites. Para o Supremo e para os tribunais; para a PGR e o Ministério Público. Para o Parlamento. Para o Poder Executivo. E para os haters. Enfim, há limites para todos os cidadãos, que devem respeitar os limites da racionalidade e o pressupostos e princípios de cultura de uma tradição autêntica (sem fake news, talkei?).
Michael Stolleis, com apoio em Bernd Rüthers, bem denunciava um período no qual a interpretação no Direito era unrestrained, ou seja, não-constrangida. Alertava igualmente para a moralização que instrumentalizava o Direito para determinados fins políticos.
E qual era esse período? Bingo. Um período que ficou conhecido como III Reich. Alemanha Nazista. Para mais um exemplo prático, quando há constrangimento, não se diz por aí que o nazismo era de esquerda…
A comunidade jurídica ficará silente? Capitulará em face da dificuldade que trazem os tempos em que se manter firme é duro, porque implica falar contracorrente?
I rest my case