O funeral de uma ‘mulher perversa’

Atualizado em 17 de abril de 2013 às 6:27

Margaret Thatcher simbolizou o egoísmo, a ganância e o descalabro social.
 

Com Pinochet, irmão em ideias
Com Pinochet, irmão em ideias

“Ela foi uma mulher perversa”, disse o eminente parlamentar George Galloway, o mais corajoso homem de esquerda da Grã Bretanha da atualidade, ao protestar contra a falácia da tentativa de glorificação de Margaret Thatcher pelo governo conservador.

“Nós estamos gastando 10 milhões de libras na canonização dessa mulher malvada, dessa mulher que arrasou a indústria britânica, da Escócia, no Norte, ao País de Gales, no Sul. A comparação com Churchill é rematado absurdo. Ele salvou a real existência de nosso país, enquanto Thatcher fez tudo o que pôde para acabar com 1/3 de nossa produção manufatureira e reduzir-nos ao que somos hoje”.

Os protestos populares da noite do último sábado, contra mais cortes no orçamento social britânico (que se iniciaram nos anos 80, com Margaret Thatcher) foram marcados pelas manifestações de júbilo pela morte da Dama de Ferro, que já se encontrava exilada de sua mente, acometida da doença de Alzheimer. Enquanto  mantinha plena consciência de seus atos, planejou seus funerais com toda a pompa desejada: honras militares e cerimônia religiosa na Catedral de São Paulo – homenagens que não se prestaram à Rainha Mãe, quando de sua morte, em 2002.

Os cartazes exibidos pelos trabalhadores nas ruas de Londres foram impiedosos na expressão de sua revolta contra a única mulher, até agora, a chefiar o poder executivo de um país anglo – saxão.

No mesmo tom de Galloway manifestou-se Lord Prescott, que foi vice-primeiro ministro de Tony Blair:  “Ela só defendeu os multimilionários, os banqueiros, os privilegiados. Nunca mostrou a menor compaixão pelos doentes, necessitados e desesperados”.

Prescott foi o primeiro a denunciar a pompa fúnebre, e sugeriu que apenas os multimilionários beneficiados por Thatcher contribuíssem para o enterro.

O consulado tirânico de Thatcher, com suas consequências abomináveis para os povos do mundo, deixa lições que não podem ser esquecidas. A primeira delas é a de que as massas, sem uma vanguarda política, e, assim, sem consciência social, são facilmente manobradas pelos líderes carismáticos da direita – ou de uma falsa esquerda.

Ela, como Hitler, nunca enganou. Desde os seus primeiros passos na política, mostrou logo a que vinha. Como funcionária do primeiro escalão do Ministério da Educação, no governo Heath, mandou cortar a ração diária de leite fornecida às crianças das escolas públicas, como medida de economia, com o argumento de que os pais podiam dar-lhes o leite em casa. Diante dos protestos – os trabalhistas vaiavam-na aos gritos de “Thatcher ladra de leite!” – ela decidiu que as cantinas escolares distribuiriam 1/3 de copo de leite a cada criança, a fim de “evitar sua desnutrição”.

O corolário de sua estranha teoria política se resume em poucas palavras: não há sociedade; há indivíduos. Cabe a cada indivíduo buscar o seu bem-estar, sem nada pedir ao Estado. Em suma: se o Estado não protege os fracos, ele só existe para garantir os fortes. Abole-se, desta forma, o princípio imemorial da solidariedade tribal, assumida pelo Estado, que garantiu a sobrevivência da espécie.

A segunda lição é a de que a mobilização política é sempre mais poderosa do que os atos de violência, quando há ainda espaço para essa conduta.

Em 1983, quando terminaria o seu mandato, com a renovação da Câmara dos Comuns, um fato inesperado serviu para que, ganhando o pleito para os conservadores, permanecesse no poder: a insensatez de Galtieri em invadir as Malvinas, sem dispor de poder militar para isso, nem do necessário suporte diplomático. E o atentado do IRA, no ano seguinte, que visava matá-la, em um hotel de Brighton, e que fez cinco vítimas, consolidou seu poder.

O atentado pode ser explicado pela brutalidade da repressão contra os militantes irlandeses, prisioneiros em Ulster. O líder Bobby Sands e vários outros iniciaram uma greve de fome que terminou com a sua morte e a de nove de seus companheiros.

A contra-revolução mundial de Mme. Thatcher contra os direitos do homem continua, na brutal insolência do neoliberalismo, sob o comando do Clube de Bilderberg e dos grandes bancos mundiais.

Em todos os países do mundo, principalmente na Europa, os pobres estão morrendo, por falta de empregos, de hospitais, de teto, de vontade de viver. Há endemia de suicídios, principalmente nos países meridionais. Thatcher morreu, mas Angela Merkel está aí, para defender as suas idéias.

Um cartaz impiedoso, exibido sábado à noite em Londres expressa o sentimento dos ofendidos e humilhados pelas “reformas” de Thatcher: “The bitch is dead” – a cadela morreu. Seus filhotes, no entanto, se multiplicam no mundo.

Se a Humanidade quiser sobreviver com a dignidade construída pela razão, e não se entregar a uma tirania universal, terá que reagir com a mobilização política dos cidadãos organizada em torno de iniciativas concretas que restabeleçam  os direitos previstos nas leis que pretendiam assegurar, em todo o mundo, o Estado de bem estar social, antes que seja muito tarde.

 

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O jornalista e escritor Mauro Santayana, 80 anos, ocupou cargos de destaque em jornais como Folha de S. Paulo e Última Hora. Amigo e conselheiro de Tancredo Neves, foi o responsável pela articulação política da campanha presidencial do então governador de Minas. Seus artigos podem ser encontrados no blog www.maurosantayana.com