Brasil não possui dados oficiais sobre falsas denúncias de estupro, mas culpabiliza vítimas. Por Caroline Oliveira

Atualizado em 8 de junho de 2019 às 18:43
Violência

Publicado originalmente no Justificando

Na Europa, falsas alegações de estupro não são mais frequentes que registros inverídicos de outros crimes, uma média que varia de 5% à 8%.

Na última quinta-feira (6), o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) protocolou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 3369/2019, que agrava a pena, em até um terço, “do crime de denunciação caluniosa quando a falsa imputação se tratar de crimes contra a dignidade sexual”. A proposta prevê punir acusações caluniosas sobre o crime de estupro e surgiu logo após a denúncia, feita pela modelo Najila Trindade, de Neymar ter cometido tal crime.

O caso ainda está em processo de investigação e será analisado por um magistrado.

Em 2017, um projeto parecido, mas do Senado Federal, tentou tornar crime hediondo e inafiançável falsa acusação de estupro. O proponente baseou-se em uma estatística noticiada segundo a qual 80% das denúncias de estupro são falsas. Depois, comprovou-se tratar de um dado falso, uma vez que o Estado não possui dados sobre denúncias falsas de estupros.

O que nós temos de dados?

Hoje, o único registro oficial sobre estupros é proveniente do sistema de saúde público. Sobre isso, a socióloga e pesquisadora especializada na área de políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres, Wânia Pasinato, afirma que mesmo os dados oficiais sobre estupro, como outros de mesmo tipo, estão sujeitos às limitações da subnotificação – ou seja, os casos não registrados, gerando um índice abaixo da realidade. Ela lembra que os registros passam por uma série de filtros, como o atendimento às mulheres vítimas de violência nas delegacias, a política institucional, região do país e afins.

Além dos registros oficiais do governo, institutos como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sistematizam informações. Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2018, foram registrados 49.497 casos de estupro nas polícias brasileiras. Considerando a subnotificação, estima-se que ocorram entre 300 mil e 500 mil estupros a cada ano, de acordo com a projeção do Atlas da Violência 2018, com dados de 2016. Isso levaria a uma estimativa média de 1.370 estupros por dia no Brasil.

De acordo com o estudo “The (In)credible Words of Women: False Allegations in European Rape Research” (As palavras desacreditadas das mulheres: falsas alegações na pesquisa sobre estupro na Europa), falsas alegações de estupro não são mais frequentes que registros inverídicos de outros crimes, uma média que varia de 5% à 8%.

A sociedade acredita que a vítima é culpada

Para Pasinato, a questão do caso Neymar mostra que a população não transpôs o limite do julgamento moral com relação à violência sexual contra a mulher. “Estamos sempre julgando a vítima” e, para isso, como é observado, “não preciso de dado oficial, basta acompanhar o debate público”. De acordo com uma pesquisa de opinião Datafolha, encomendada pelo FBSP, DE 2016, 33,3% da população brasileira acredita que a vítima é culpada. Entre os homens, sobe para 42%.

Tem-se aqui, segundo Pasinato, uma linha que divide a vítima verdadeira da falsa que não pode ser medida com dados. Porém, para ela, é preciso compreender como tais denúncias são produzidas nos registros oficiais e processos judiciais, “porque, mesmo que não se diga se tratar de uma mentira, as mulheres são desqualificadas como vítimas, responsabilizadas no processo, vistas com desconfiança”.

“Não se acredita que a mulher tenha sofrido uma violência de fato, acredita-se que está sempre instrumentalizando algum direito que foi adquirido para tirar algum tipo de benefício. Acaba caindo nesse campo moral, ausente de evidências.” Segundo ela, o “próprio” sistema de Justiça não quantifica corretamente a quantidade de casos de estupros processados, “quem dirá os casos denunciados e, depois, constatados falsos”. De acordo com a socióloga, os dados são importantes para construir políticas que condizem com a realidade e refletir o que se comunica para a sociedade sobre violência contra a mulher.

A importância da educação sexual

Para além da discussão da proposta e da acusação de falsa denúncia, Pasinato afirma que a judicialização das questões de violência de gênero, ou seja, tratar do assunto pelo viés de uma lei penal, é “preocupante”. “Não se encontra espaço para implementação de outras políticas, como a educação sexual, para tratar dos problemas das relações de gênero, para que a violência deixe de ser uma pratica tolerada e para que as mulheres não sejam vistas como esse ser demonizado e perverso que tenta enganar os homens. O sistema de justiça não é a melhor saída.”

Para Maíra Zapater, advogada, doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP, a educação sexual também é essencial. De acordo com dados do Hospital Pérola Byington, que atende vítimas de violência sexual, os estupros registrados são observados mais com crianças e adolescentes. “Acho que tem lugares que chega a mais de 50% do total de crimes”, afirma. “Quando se coloca educação sexual na escola, dá para interromper um ciclo de violência ali, de imediato.”