O neoliberalismo e a necropolítica: o objetivo é deixar morrer as pessoas que não são rentáveis

Atualizado em 6 de julho de 2019 às 15:33
Favela e pobreza no Brasil. Foto: Tania Rego/Agência Brasil

Publicado originalmente no Resista! Observatório de Resistências Plurais

TRADUZIDO POR LUIZ MORANDO

Clara Valverde, ativista política e social, além de escritora, apresenta seu novo livro De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (Icaria / Más madera): “O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos Excluídos, que os vejam como estranhos, diferentes, desagradáveis e não se solidarizem com eles.”

Valverde apresenta seu novo livro com a alusão a um texto pichado em um muro: “Com a ditadura nos matavam. Agora nos deixam morrer.” Em De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (‘Icaria/Más madera’), essa ativista e escritora sustenta que o sistema neoliberal é incompatível com a luta contra a desigualdade. Para ela, esse sistema divide a sociedade em excluídos e incluídos: desconsidera os primeiros e atemoriza os segundos para perpetuar e aumentar o poder e a riqueza dos privilegiados.

O que devemos entender por “necropolítica neoliberal”?

Necro é o termo grego para ‘morte’. As políticas neoliberais são políticas de morte. Não tanto porque os governos nos matam com sua polícia, mas porque deixam morrer pessoas com suas políticas de austeridade e exclusão. Deixa morrer os dependentes, os sem-teto, os doentes crônicos, as pessoas nas listas de espera, os refugiados que se afogam no mar, os emigrantes nos CIE[i]

Os corpos que não são rentáveis para o capitalismo neoliberal, que não produzem nem consomem, são deixados para morrer.

Como você consegue convencer os cidadãos de que essa “necropolítica neoliberal” os beneficia? Por que não ocorre uma rebelião massiva contra ela?

Os que ainda não estão excluídos, os que ainda acreditam no mito de que nesta sociedade somos livres aceitam e endossam o que dizem os poderosos e sua imprensa: que os excluídos não são como eles, que são um povo imundo e sujo, diferente, com má sorte e maus hábitos. O mito interiorizado é que os excluídos procuraram a situação que sofrem.

Não ocorre uma rebelião massiva contra as necropolíticas dos governos, contra a exclusão, porque as pessoas que ainda não estão excluídas não se identificam com os excluídos. Pensam “este não sou eu”, “isso não vai acontecer comigo”. Não se deixam identificar com aquele que sofre, não tem empatia radical. Na realidade, as necropolíticas afetam a todos. Então, essa pessoa incluída na doença será possivelmente excluída sem renda e sem ajuda.

Nesse desenho social, há cidadãos excluídos e cidadãos incluídos. Ninguém defende os excluídos?

Muito poucas pessoas defendem os excluídos. Quantas pessoas se organizam para apoiar os sem-teto? Quantas ajudam os idosos ou doentes crônicos e suas associações? Na PAH [Plataforma de Afetados pela Hipoteca – “associação de pessoas que perderam sua casas para os bancos e foram despejadas”] há apoio mútuo e empatia radical, mas quase todos os que estão ativos na PAH também são afetados pelos despejos.

Os incluídos acreditam que estão a salvo de expulsão do sistema, mas são advertidos a todo o momento de que podem ser excluídos. O temor da exclusão estimula a falta de solidariedade em nossa sociedade?

Os que agora têm sorte de não estar doentes, despejados, desempregados, deveriam pensar que a maioria, a menos que se tenha muito capital econômico, poderia chegar a ser excluída. Vamos dizer que você era motorista de ônibus. Se você adoece, ainda que tivesse contribuído durante anos, é muito possível que o Instituto Catalán de Evaluaciones Médicas (ICAM) te dê alta, mesmo que esteja muito doente para trabalhar. Então, o que você fará? Sem poder trabalhar, sem renda e com as despesas que uma doença implica e que a Seguridade Social não cobre…

O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos Excluídos, que os vejam como estranhos, diferentes, desagradáveis e não se solidarizem com eles.

O neoliberalismo impõe sua necropolítica mediante a violência. Mas essa violência nem sempre é explícita. Você diz que o mais eficaz para os interesses do neoliberalismo é a ‘violência discreta’. A que você se refere?

Por exemplo, cortes, mercantilização e privatização da saúde pública são uma violência discreta. Não matam a tiros os doentes das listas de espera. Mas, quantos morrem nessas listas intermináveis? Essas listas são longas porque os administradores da saúde pública e os políticos as organizam para que a saúde privada “sugue” dela. Isso tem, como uma de suas consequências, o sofrimento e a morte lenta dos doentes que esperam.

Você afirma que o sentido das palavras tem mudado e que, para combater a necropolítica neoliberal, temos que voltar a chamar as coisas pelo seu nome. Quais armadilhas da linguagem você destacaria?

Temos que chamar as coisas pelo nome que elas têm. Políticos neoliberais de direita, aqueles que são “centristas”, todos nos maltratam. Não há outra palavra. É mau trato. As condições laborais são maus tratos. Os cortes são maus tratos. As leis de mordaça são maus tratos.

Existem muitas armadilhas linguísticas. O fato de as pessoas tomarem como suas as frases-armadilhas dos poderosos é preocupante. Frases como “É o que temos”, “Não posso reclamar”, “Não vai piorar”, “Nada acontece” etc. ou o ‘pensamento positivo’ que faz as pessoas se sentirem culpadas por estarem zangadas com os políticos e com a situação atual.

A tolerância é outra grande armadilha. A tolerância é muito violenta. Você tenta dizer que é bom, que sim, temos que tolerar o que é diferente. ‘Tolerar’ quer dizer ‘aguentar’ e é uma posição de poder sobre o outro. “Eu te aguento mesmo que você seja pobre, trans, negro, autista etc.” Não, as diferenças não são para ser toleradas. As diferenças têm que ser olhadas, entender o motivo das desigualdades entre grupos diferentes e mudar a situação. É necessário nomear as desigualdades e lutar contra elas ao mesmo tempo em que celebramos a diversidade.

É chocante quando se fala sobre a contratação de deficientes ou o papel das ONG como um instrumento manipulado pelo neoliberalismo em interesse próprio.

Aqui não se fala disso, mas em muitos países, sim. Há numerosos autores que falam de “ONGismo” e de “Inspiração Pornô”.

O ONGismo é a utilização da comunidade para fazer o trabalho que o governo deveria fazer com nosso dinheiro. O ONGismo é um tema complexo porque as pessoas boas que se envolvem com uma ONG o fazem com boas intenções. Mas então são eles os que têm que cortar e fazer com que seus funcionários aceitem salários miseráveis para realizar tarefas que correspondem ao Estado de Bem-estar Social.

Dê alguns exemplos dessa manipulação na publicidade.

Há alguns anos a Fundação La Caixa utilizava pessoas com síndrome de Down não muito severa como exemplos de como deveriam ser os trabalhadores. Agora há um anúncio da empresa de máquinas de lavar roupas, Balay, em que um mudo diz: “Olhe! Se um trabalhador com deficiência é o melhor trabalhador, sorria e não reclame: você, que não é deficiente, deveria se calar, trabalhar e não protestar”. Isso é um exemplo de “Inspiração Pornô”, uma espécie de pornografia com os deficientes.

Mas a realidade é que a maioria dos deficientes não tem renda e sofre muito. E se consegue um trabalho, sua empresa não tem que pagar sua Previdência Social. É uma economia para o dono.

A necropolítica é especialmente evidente na Espanha? Você destaca que nesse país tem sido enterrada a memória histórica do que supunham ser a guerra e o franquismo, que apenas no Camboja há mais valas comuns por abrir.

Na realidade, a necropolítica pode ser vista no mundo todo. Veja a situação de violência no México.

Mas sim, uma sociedade como a nossa, que se destaca mundialmente pela quantidade de pessoas desaparecidas e sem enterrar há 80 anos, não é uma sociedade que possa funcionar de forma humana. Temos mais de 100.000 avós e avôs sem enterrar ainda. Quantas pessoas da nossa geração são afetadas por isso diretamente? E indiretamente?

Caminhamos por campos e vales, e sob nossos pés estão milhares e milhares de pessoas que o governo, nenhum governo, crê que mereçam ser encontradas e entregues a suas famílias. Isso produz uma sociedade muito doente.

O sistema de saúde serve como exemplo perfeito da forma de atuar dessa necropolítica neoliberal. É onde se torna mais evidente seu modo de agir?

É uma das áreas onde mais vemos o sofrimento causado pela necropolítica, porque no sistema de saúde trabalhamos com a vida e o corpo das pessoas, com o sofrimento inevitável que é parte do ser humano.

Dou um pequeno exemplo: os profissionais de enfermagem de hospitais nos quais se implantou o método “Lean”, inventado para as cadeias de montagem de carros da Toyota. Eles dão mais importância a estar “no horário” (pontuais com a velocidade que suas tarefas lhes impõem, velocidade nada humana nem para o profissional nem, sobretudo, para o paciente) do que à qualidade do trabalho e ao bem-estar dos pacientes. Dizem estar contentes se estão “no horário”, como se fossem condutores da Renfe[ii]!

O método Lean foi implementado sem protestos entre os profissionais de saúde. Da mesma forma que muitos profissionais não questionam o Lean, tampouco questionam o autoritarismo e o paternalismo que eles mesmos utilizam com os doentes.

O que é grave é que esses profissionais de saúde são também vítimas de autoritarismo e paternalismo das administrações de saúde. Eles são maltratados e exige-se que também maltratem. Finalmente, sem se dar conta, acabam fazendo o que muitos autores chamam “governar por terceiros”, ou seja, fazendo o trabalho sujo dos neoliberais.

E essa ação é simbolizada pelas doentes com Síndrome de Sensibilização Central (SSC). Por quê?

Porque as doentes (a maioria é composta por mulheres, adolescentes e crianças) de SSC são pelo menos 3,5% da população – ainda que os pesquisadores internacionais digam que o percentual é muito mais alto – e a cada ano perdem parte dos poucos direitos que tinham. Com Boi Ruiz[iii], os enfermos de SSC na Catalunha deixaram de ter direito de acessar seus médicos. E se o novo conselheiro seguir o acordo Juntos Pelo Sim-CUP, seguirão sem poder ver seu médico e os que adoecem agora não poderão ser diagnosticados.

Oitenta por cento desses doentes vivem fechados em suas casas, em suas camas, sem nenhuma ajuda de saúde nem social. E estão doentes demais para protestar, participar de movimentos sociais etc. A maioria adoece entre 10 e 30 anos de idade. Não tem plano de saúde. Uma longa vida de pobreza e sofrimento os aguarda na cama. E aqueles que conseguiram trabalhar alguns anos e pagar algum plano de saúde, o ICAM faz todo o possível para que não tenham nenhuma ajuda financeira. Até os que conseguiram uma pensão através dos tribunais, o ICAM lhes tira a pensão.

O antídoto contra essa necropolítica está no desejo de compartilhar. “Para sobreviver e viver é preciso compartilhar”, você diz. Isso vai funcionar?

As iniciativas, ideias e grupos envolvidos em comum são o antídoto contra a necropolítica. O que o poder absoluto quer dividir, nós temos que juntar. Temos que juntar pessoas doentes, saudáveis, trans e todos os gêneros, várias raças, anciãos, crianças… Mas para fazê-lo temos que desenvolver uma empatia radical e começar a partir dos espaços excluídos. Não funciona que os “incluídos” convidem os excluídos para seus movimentos. Tem que ser o contrário. Os que ainda se acham incluídos precisam ir a esses espaços intersticiais onde a exclusão vive e começar a partir daí.

Nesse sentido, quero agradecer ao Catalunya Plural por entender que para poder ter esta entrevista comigo, que vivo na cama 90% do tempo com encefalomielite miálgica [síndrome da fadiga crônica], tivemos que fazer do meu jeito. Alguns precisam de uma rampa para suas cadeiras de rodas. Outros precisam de Skype e e-mail.

Entrevista de Clara Valverde publicada inicialmente em 11 de julho de 2017, em El Diário. Disponível em: <http://www.eldiario.es/catalunyaplural/neoliberalismo-aplica-necropolitica-personas-rentables_0_479803014.html>.