PUBLICADO NO BRASIL DE FATO
POR ANELIZE MOREIRA E MARCOS HERMANSON
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 29 anos neste sábado (13). Aprovado em 1990 como forma de assegurar direitos à população jovem do Brasil, o documento coleciona avanços e retrocessos no período de redemocratização do país, e hoje convive com a ameaça de ser atropelado pelas políticas de extrema direita do governo Jair Bolsonaro (PSL).
O ataque mais recente às crianças e adolescentes ocorreu em uma transmissão ao vivo pelas redes sociais, há uma semana. O presidente enalteceu o trabalho infantil – considerado crime no país –, ressaltando que “o trabalho dignifica o homem, não importa a idade”.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato comentaram as mudanças de cenários nas últimas três décadas e debateram os desafios impostos com o novo governo.
Para Thais Dantas, que integra o Instituto Alana e atua como consultora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o ECA representou “um marco civilizatório do país”, pois estabeleceu “que crianças e adolescentes são prioridade absoluta”.
O ECA reproduziu alguns dos princípios que constavam na Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1979 e na Convenção Internacional sobre os direitos da Criança, aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989.
Com a assinatura definitiva, em 1990, o Estado brasileiro se comprometeu a entregar à ONU um relatório sobre a implementação do tratado em 1992, e em seguida, a cada cinco anos. Porém, isso só foi feito em novembro de 2003, quando o governo Lula (PT) encaminhou um informe com o panorama da situação da infância no Brasil entre 1991 e 2002.
Karyna Sposato, do Fórum de Segurança Pública, aponta que o Estatuto avançou no sentido de coibir a violência contra as crianças em ao menos dois espaços importantes: “Houve diminuição na violência praticada dentro de casa e na escola”. Ela também cita uma mudança simbólica, que ajudou a demarcar como inaceitáveis ou ineficazes determinados tipos de agressões: “Essa violência passou a ser debatida com mais clareza, e houve um processo de conscientização do mundo adulto de que não é legítimo, aceitável, o uso da violência como forma de educação”.
Ao longo dos anos, o ECA também abriu caminho para outras políticas, como a Lei da Escuta Protegida, a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e a Lei da Palmada, em vigor desde 2014. As pesquisadoras argumentam, entretanto, que parte das ações implementadas ou defendidas pelo governo federal, como a redução da maioridade penal, os cortes orçamentários na educação e os decretos de flexibilização do porte de armas, podem levar a retrocessos nas políticas de proteção às crianças e adolescentes.
“Qualquer política pública aprovada ou implementada no país deve considerar o possível impacto em crianças e adolescentes”, afirma Dantas. “Nesse sentido, deve favorecer seus direitos ou pelo menos mitigar e prevenir potenciais riscos a eles”. Para a especialista, isso é exatamente o oposto do que vem fazendo o governo Bolsonaro. Portanto, o ECA está sob ameaça de esvaziamento.
Sobre o armamento, a pesquisadora analisa que “o primeiro decreto [editado pelo presidente] permitia o porte de armas inclusive para agentes socioeducativos e conselheiros tutelares. O decreto foi revogado e novos três [decretos] foram propostos. Essa questão já não consta mais, mas o impacto é muito negativo”.
Dantas alerta para a possibilidade de as novas regras gerarem “impacto direto na infância e adolescência, por conta do aumento da mortalidade. Recentemente, estudos feitos em países com legislações mais permissivas mostraram que houve aumento da mortalidade de crianças e adolescentes, inclusive com aumento do índice de suicídios”, lembra.
Para Sposato, o governo Bolsonaro representa uma mudança radical na abordagem dos problemas que envolvem crianças e adolescentes: “A gente está saindo de um paradigma de prevenção para um paradigma de reação à violência. Mas a reação é tão violenta quanto, e pode inclusive exacerbar a violência que afeta crianças e adolescentes”, argumenta.
“No momento em que o adolescente infrator passa a ser compreendido como inimigo, se perverte a lógica do Estado como garantidor do direitos de todos. Ela passa a garantir os direitos de apenas alguns”, diz a pesquisadora do Fórum de Segurança Pública.
Dantas, por sua vez, ressalta os cortes orçamentários implementados pelo governo, que previam o “congelamento” de aproximadamente R$ 7 bi de reais do orçamento da pasta da Educação, afetando desde o ensino básico até o ensino superior.
“Embora tenhamos visto grandes avanços na educação no país, como a universalização cada vez maior do ensino, ainda há problemas na valorização de professores, na infraestrutura, na universalização de algumas faixas do ensino como o infantil, no combate à evasão escolar”, lamenta.
Considerados os desafios que o país ainda precisa enfrentar, a pesquisadora entende que os cortes agravam ainda mais uma situação que já é difícil, afetando exatamente aqueles que deveriam ser protegidos pelo ECA: “Por conta disso, cortes orçamentários na educação impactam diretamente crianças e adolescentes, e são contrários à regra constitucional da prioridade absoluta”, conclui a pesquisadora.
Edição: Daniel Giovanaz