O dia em que a universidade foi oferecida à Bolsa. Por Felipe Demier

Atualizado em 18 de julho de 2019 às 6:39
Sala de aula na Unicamp. Foto: Wikimedia Commons

Publicado origiinalmente no site Esquerda Online

POR FELIPE DEMIER

A coruja só levanta voo quando do crepúsculo, lembrou certa feita o velho Hegel. Assim, olhando para trás, é possível notarmos hoje como o nosso futuro, ou melhor, o “future-se” deles, vinha se desenvolvendo gradativamente em nosso passado recente, e adentrou nosso tempo presente.

Acriticamente, as pós-graduações universitárias aceitaram toda uma série de exigências burocráticas cuja justificativa última era a obtenção de verbas para a pesquisa. Assim, paradoxalmente, visando à obtenção de condições materiais necessárias à pesquisa não fizeram senão adotar um funcionamento que, por si só, obstaculiza o próprio ato de pesquisar. Em nome do dinheiro para a ciência, a ciência foi sacrificada ao dinheiro no altar dos pseudocientistas e tecnocratas de powerpoints. A adesão, resignada ou entusiástica, das pós-graduações à lógica produtivista, e sua obsessão com relatórios, comprovações, prazos, plataformas, cadastros, normatizações, publicações, qualis, sucupiras, lattes, capesprints e congêneres prepararam adequadamente o terreno, deixando-o pronto para o plantio que hoje foi anunciado – e o fato de que os modestos roceiros agora se assustem com as malignas sementes e os poderosos tratores que chegam para a futura colheita não altera em nada tal fato.

Houve e está havendo, inegavelmente, uma mudança de qualidade não só nas áreas da ciência e da educação, mas no país como um todo. Afirmar que o “future-se” bolsonarista é apenas uma continuidade linear, ou um mero aprofundamento, do passado-se tucano e petista é tão correto quanto dizer que a noite é apenas a sequência temporal do dia, o que um simples agricultor, motorista e qualquer outro sujeito que dependa da luz para seu labor sabe, na prática, que não procede. No entanto, não há noite que possa vir sem dia, assim como não há transformação de qualidade que não venha sem alguma intensa mudança de quantidade. O novo sempre vem, é verdade, mas não vem do zero. Assim, o modelo de empresariamento total da universidade pública, proposto hoje pelo governo da lumpemburguesia iletrada e ressentida, não é, decerto, o mesmo modelo de universidade vigente nas últimas três décadas, nas quais foi administrada, de cima, pelos prepostos da burguesia ilustrada. Contudo, o modelo empresarial há pouco anunciado só encontra condições propícias – incluindo “material humano”, com o perdão da apropriação do léxico adversário – para ser aplicado, ou pelo menos para ser tentado, porque o atual modelo de universidade, burocrática e produtivista, foi fundamentalmente preservado e até mesmo desenvolvido pelas gestões da esquerda neoliberal (com não desprezíveis particularidades em relação à direita neoliberal, entre elas, e principalmente, a democrática política de cotas).

Desse modo, não é possível, pensamos, compreender como chegamos ao dia 17 de julho, quando a Universidade foi finalmente oferecida à Bolsa, quando os venosos cangotes da ciência, nus e inermes, foram anunciados ao vampiresco mercado, sem olharmos criticamente para quando – e a tese de doutorado de Simone Silva o expõe brilhantemente – muitos dos nossos pares cientistas, em “nome da ciência”, não viram nenhum problema em fazê-la não para as amplas massas populares que laboriosamente a sustentam, e sim com e para o mercado. Ali, com as fundações, com as parcerias com o mercado, com o novo marco tecnológico e, também, com a cotidiana lógica produtivista de resultados burocraticamente mensurados, o vampiro foi nos cercando, até que finalmente, um dia, foi convidado para entrar. Agora sedento, nos advertindo sobre nosso inexorável futuro exangue, ele nos cobra ousadia e coragem, nos insta a sair de nossa “zona de conforto” e, como um bom coach desse Brasil transilvânico atual, nos incentiva a mudarmos nosso mindset, a competir, a empreender e, quem sabe, a abrir uma startup de transfusão de sangue.

Se quisermos dar uma chance à universidade e à ciência, uma reflexão crítica sobre ambas é incontornável e inadiável. O passado, por óbvio, já passou, mas sem uma crítica deste o presente não poderá parir um futuro melhor, mais justo, solidário, comunitário, universitário – no sentido talvez original do termo. As trombetas já soaram. Não seria a hora de pensarmos se é justo e natural agir, nesses dias, como se tudo fosse justo e natural? Não seria a hora de produzirmos, como disse o jovem Marx, a arma da crítica e, assim, realizarmos, com a pena e a voz, a crítica das armas, apontando contra os monstros da irrazão a nossa bala de prata do saber? Não seria a hora de finalmente livrarmos Prometeu de suas correntes e reacendermos o autêntico fogo do conhecimento, empunhando-o contra os defensores religiosos das trevas? O titanic da ciência já começou a naufragar, e nós vamos, tal qual a banda do velho barco, seguir impavidamente tocando nossas aulas, bancas, relatórios e afins até que água chegue aos nossos pescoços? Se depois de hoje não começarmos verdadeiramente a resistir, restará a nós, para a felicidade do vampiro que avidamente nos contempla, humilhantemente nos digladiar por botes salva-vidas para ver quem escapa e quem sobrevive, isto é, quem, uma vez em terra e a salvo, será mordido e viverá eternamente, triste e sem razão. Na escuridão. Para sempre.

x.x.x.x.

Felipe Demier é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).