Publicado no Sul21
No dia 31 de julho deste ano, a juíza federal Ana Paula de Bortoli acatou em caráter liminar um pedido do Ministério Público Federal de suspensão de artigos do Decreto nº 9.725, assinado em março pelo governo Bolsonaro, que determinava a extinção de cargos, funções e gratificações nas universidades e institutos federais no Rio Grande do Sul. O decreto em questão extinguiu 21 mil postos, sendo 600 em instituições federais de ensino no Rio Grande do Sul. O MPF argumentou que o decreto feria o princípio da autonomia das instituições federais, garantido pelo artigo 207 da Constituição, que diz: “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
A iniciativa é uma de um conjunto de ações que vêm sendo tomadas pelo Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul contra medidas do governo Bolsonaro que, na avaliação do MP, violam a ordem constitucional. “Se um determinado governo implementa certas medidas e não compreende, por exemplo, o papel constitucional de um decreto autônomo, exorbitando na sua utilização, a gente acaba tendo que atuar mais fortemente para isso voltar à sua normalidade”, diz o procurador Enrico Rodrigues de Freitas, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do MPF.
Em entrevista ao Sul21, Enrico de Freitas fala sobre essa atuação no MP Federal, em temas como a defesa da autonomia universitária, dos direitos de grupos sociais em situação de vulnerabilidade e contra os discursos de ódio e violência que seguem crescendo no país. “O resultado da eleição não significou uma alteração do nosso sistema constitucional. A Constituição continua sendo a mesma. Há uma mudança de governo, mas há uma equivocada interpretação de parte da sociedade de que isso acarretaria uma mudança de sistema de uma forma extrema, de modo que certas práticas seriam legítimas ou possíveis”, afirma.
O procurador alerta ainda para os riscos de um recrudescimento do clima de ódio e intolerância no país. “Eu acho que se não houver uma reação forte da sociedade civil esse cenário tende a se agravar. Aquelas pessoas que pensavam que é legítima a tortura hoje se sentem com a possibilidade de afirmar isso publicamente, legitimando atos de barbárie”.
Sul21: Qual sua avaliação sobre o cenário de violações de direitos e prerrogativas constitucionais e de crescente violência e intolerância que estamos vivendo no Brasil hoje?
Enrico de Freitas: Estamos vivendo um período, já há um período razoavelmente significativo de dois ou três anos, em que há um recrudescimento desses discursos de intolerância e de violação de direitos humanos. Esses discursos postulam, por exemplo, uma intervenção militar no país, ou legitimam atos de barbárie como tortura ou eliminação de pessoas. Esse discurso vem crescendo muito. A gente percebe o incremento de uma polarização na sociedade onde há hoje uma tentativa de legitimação de um discurso de violação de direitos humanos. Isso é muito ruim.
Tivemos um processo eleitoral bastante complexo, digamos, mas o resultado da eleição não significou uma alteração do nosso sistema constitucional. Temos uma Constituição que garante as liberdades democráticas, a liberdade de expressão, o combate à tortura, à violência e ao discurso de ódio, entre outras coisas. A Constituição garante também a necessidade de uma justiça de transição em relação aos crimes da ditadura. Nada disso mudou. A Constituição continua sendo a mesma. Há uma mudança de governo, mas há uma equivocada interpretação de parte da sociedade de que isso acarretaria uma mudança de sistema de uma forma extrema, de modo que certas práticas seriam legítimas ou possíveis.
Ao se dar voz e poder a certos tipos de discursos, eles acabam se sentindo legitimados, atuando, não só na sociedade como um todo, mas também dentro de órgãos do Estado brasileiro. Isso tem que ser colocado muito claramente, de forma a se buscar uma adequada normalidade dos órgãos estatais, que devem continuar cumprindo os exatos termos da Constituição, ao qual todos na República estão subordinados, seja o Ministério Público, o Judiciário ou a presidência da República. Todos estão subordinados ao que diz a Constituição. Ninguém está acima dela. Isso tem que ser dito com muita veemência de forma que esses discursos de ódio, intolerância e violência sejam barrados e banidos, para que possamos voltar a uma normalidade das discussões e do diálogo.
Sul21: Como esses fenômenos de discursos e práticas de ódio, intolerância e violência chegam na Procuradoria?
Enrico de Freitas: Chegam de muitas formas. Temos uma necessidade significativa de atuação em questões as mais amplas possíveis, que violam a Constituição no nosso entendimento. Como aqui atuamos diretamente no controle da administração pública federal, na garantia dos direitos do cidadão, isso está sempre relacionado à atuação de entes ou autoridades públicas. Como disse, isso tem chegado aqui das mais diferentes formas. Um exemplo disso é atuação que tivemos quanto à censura de uma propaganda de um banco público por ordem da presidência da República de uma forma indevida, envolvendo um discurso de cunho preconceituoso e de intolerância.
Outro exemplo de um tema no qual estamos fortemente envolvidos é o da defesa da autonomia universitária, com a instalação de diversos inquéritos civis e com o ajuizamento de ações. A nossa atuação se dá dentro da forma constitucional que determina que cabe ao Ministério Público defender a garantia da ordem democrática e a garantia dos direitos do cidadão e nos dá os meios constitucionais e legais para isso, instaurar inquérito civil, expedir recomendação, propor ação civil pública. Então, nós atuamos na forma prevista pelas regras constitucionais. Obviamente, uma eventual divergência de interpretação será resolvida pelo Poder Judiciário.
Sul21: Dentro desse tema da autonomia universitária, o senhor poderia detalhar um pouco mais que ações são essas que estão sendo tomadas pelo Ministério Público Federal?
Enrico de Freitas: Estamos lidando com várias questões relacionadas à autonomia universitária. Em primeiro lugar, não há autonomia se as universidades não tiverem recursos para exercer a sua atividade. E nós temos aí um corte de recursos extremamente significativo que pode levar à desestruturação das universidades públicas e institutos federais ainda no meio do segundo semestre de 2019. Mas há outras medidas que são mais claramente atentatórias a essa autonomia. Quando temos um decreto presidencial que diz que os pró-reitores, ou seja, a estrutura administrativa que é designada por um reitor, não poderão mais ser designados pelo mesmo, a essência da autonomia universitária há mais de 800 anos está sendo violada. Como é que um reitor vai implementar seu projeto, que foi eleito pela comunidade acadêmica e escolhido em lista tríplice pelo presidente da República, se ele não pode designar seus pró-reitores? Não pode sequer exonerar também.
Outro aspecto grave é a submissão de cargos de determinado patamar, não só das universidades, mas de outras instituições públicas, à análise prévia da Agência Brasileira de Informações (Abin). Isso é recente e está previsto no decreto 9794/2019. Isso nos faz rememorar o Serviço Nacional de Informações (SNI). Assim, servidores como reitores, pró-reitores ou chefe de departamento, entre outros, teriam uma análise de vida pregressa feita pelo órgão de informações do governo. Isso não está previsto em lei e a assunção de qualquer cargo público se dá mediante requisitos de lei. Uma pessoa pode ter seu direito de assumir um cargo público tolhido por uma avaliação do órgão de informações do governo. Isso é muito grave. É atentatório não só da autonomia universitária, mas de aspectos democráticos e de legalidade.
Há outro decreto, que conseguimos uma liminar para suspender, que extinguia cargos e funções nas universidades e trazia uma desestruturação administrativa. As universidades têm diversas sedes e campi, possuindo uma série de chefias intermediárias, de setores administrativos, de bibliotecas. Essas chefias têm uma função de controle, de estágio probatório, de ponto, de responsabilização por diversos serviços. Se não tivéssemos obtido a liminar, teriam sido extintos mais de 600 cargos nas universidades e institutos federais aqui no Rio Grande do Sul. E é importante destacar que são cargos de valor. Quando falam em cargos em comissão vem sempre aquela ideia de que são pessoas que ganham muito e não trabalham. Esses cargos, reconhecidamente pelo próprio governo, trazem um adicional de algo entre 100 e 200 reais por mês. Então, a pessoa não assume esses cargos por conta da remuneração, mas para exercer uma função de chefia, de controle da administração. Imagine um setor de licitações sem chefia? O que a gente vai ter se ninguém se responsabilizar por uma licitação? Que prejuízo isso vai acarretar do ponto de vista financeiro?
Além do mais, com essa medida, temos uma verticalização da autoridade, trazendo prejuízo acadêmico. Um diretor de faculdade será o chefe de toda a faculdade. Como é que ele vai fazer todo o controle e ainda se dedicar às atividades acadêmicas? Tudo isso para uma hipotética economia anual de 0,04%. É desproporcional, desarrazoado e provoca uma desestruturação da universidade.
Outro decreto, que ainda não está em vigor, determina a centralização no Poder Executivo de toda a comunicação das universidades. Os sites das universidades deixarão de existir como existem hoje, como .edu, e passarão a ser .gov.br. Toda informação, desde uma publicação sobre uma banca de mestrado, terá que ser submetida à autorização de um órgão central. Isso é algo que viola toda a estrutura da autonomia universitária. Dentro de todo esse contexto, surge o projeto Future-se, que é apresentado em um contexto de arrocho das universidades que, em tese, poderiam aderir ou não ao mesmo. Mas quais serão os efeitos de não aderir? Então, não é um projeto, no contexto atual, que possa ser considerado como não violador da autonomia universitária.
A universidade pública é responsável pela nossa educação superior e pela quase totalidade da pesquisa científica feita no Brasil. Isso é estratégico para um país. Falam de países como a Inglaterra e os Estados Unidos, onde as universidades são privadas. Podem ser privadas, mas de 70 a 80% dos recursos dessas universidades são aportados pelo poder público, que compreende o papel estratégico que a pesquisa e a produção científica representam. A nossa universidade pública é muito forte e presente nesta produção, mesmo com todas as dificuldades que enfrenta.
Sul21: No final do ano passado, diversas entidades, em conjunto com o Ministério Público, criaram o Fórum Permanente de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio. Poderia detalhar um pouco o trabalho que esse Fórum vem realizando?
Enrico de Freitas: Em 2016, foi realizada uma audiência pública no Ministério Público Federal sobre o aumento dos discursos de intolerância e de ódio. A principal sugestão que surgiu nesta audiência pública foi a criação de um fórum de âmbito estadual para promover ações públicas de combate a esses discursos. Desde que eu assumi a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, esse vem sendo um ponto prioritário da minha atuação. Hoje, esse Fórum conta com a participação de inúmeras entidades, tanto da sociedade civil como representantes do poder público.
A gente vem estabelecendo algumas ações para combater esse discurso de intolerância, seja por meio de programas diretamente relacionados à educação ou por atividades relacionadas aos efeitos destes projetos anti-crime sobre os movimentos sociais. Algumas propostas tendem a criminalizar esses movimentos, quando temos o aumento de forma desarrazoada da pena pelos crimes de desobediência ou resistência, que pode chegar a 30 anos. No meu entendimento, temos aí uma tentativa de cercear a liberdade de atuação dos movimentos sociais.
Participam desse Fórum o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado, representantes de outros órgãos do Estado, do município, de ONGs, sindicatos, MST, entidades como a Associação Mães e Pais pela Democracia, Nuances, Coletivo Feminino Plural, Mães pela Diversidade, entre outras. Trata-se, portanto, de um movimento muito amplo do ponto de vista social e estatal. É um espaço de articulação pública para promover medidas e ações de combate a esses discursos. Temos programado um seminário, para o início de setembro, sobre a situação de autocensura nas escolas, onde os professores têm medo hoje de falar e de serem gravados. Estamos preparando uma campanha sobre essa questão da gravação nas escolas.
Sul21: Isso tem acontecido muito, segundo os relatos que chegam até vocês?
Enrico de Freitas: As gravações até acho que não nem tanto, mas a autocensura é uma coisa muito forte. As pessoas têm medo de falar, especialmente na rede privada, mas também na pública, por como situações de assédio moral em redes sociais. Se essa prática de assédio não for coibida, não conseguiremos reverter esse quadro onde as pessoas ficam com receio de exercer a sua liberdade de expressão e sua liberdade de ensinar. Isso traz prejuízo para o próprio estudante, que também não tem mais liberdade de aprender e fica dentro de um meio onde não deveria haver essas travas. O meio da educação é, por essência, o meio da liberdade de pensar. Como é que você vai pensar se não pode falar, não pode perguntar e não pode responder?
Sul21: Na semana passada, o Ministério Público Federal, junto com o Ministério Público Estadual, assinou um termo de cooperação com um grupo de sindicatos e entidades da sociedade civil para combater o assédio moral contra os professores. Qual é a ideia dessa iniciativa?
Enrico de Freitas: A ideia é criar um canal oficial e adequado para que essas denúncias saiam da obscuridade e ganhem visibilidade de forma que possamos atuar de forma pontual ou até do ponto de vista preventivo. Essas ações preventivas, inclusive, podem estar articuladas com o trabalho do Fórum.
Sul21: No Brasil, ainda temos um déficit de acesso à informação muito grande. Considerando o trabalho que vocês desenvolvem, quais são os canais que o cidadão tem com o Ministério Público Federal para relatar violações de direitos ou outros casos de violência?
Enrico de Freitas: Nós temos em qualquer sede da Procuradoria da República, uma sala de atendimento ao cidadão. Não é um balcão de atendimento ao público daquela forma tradicional, mas uma sala voltada a um atendimento humanizado. Todos os dias fazemos vários atendimentos. Em qualquer sede nossa tem uma Sala do Cidadão. Quando não é caso de atendimento do Ministério Público, há um encaminhamento da pessoa para o órgão que tem atuação pertinente ao fato relatado. Além disso, esse acesso pode ser feito por telefone ou pelos sistemas informatizados por meio dos quais a pessoa pode trazer para nós uma notícia de fato. Isso vai gerar um protocolo e a pessoa pode acompanhar o encaminhamento do relato feito. Nós instauramos ou não um procedimento, dependendo do caso e, quando não instauramos, damos uma resposta fundamentada e a pessoa tem o direito de recorrer dessa decisão para nossas instâncias internas.
Esse fato relatado tem que estar relacionado a algum problema coletivo, para que possamos atuar. Se for um problema individual, encaminhamos à Defensoria Pública ou outro órgão competente. Quando se trata de uma reclamação, de um elogio ou de uma comunicação sobre a atuação do Ministério Público, nós temos a Corregedoria e a nossa Ouvidoria que permite esse contato relativo à nossa atuação.
Sul21: Considerando o atual cenário político e social no país, qual sua avaliação sobre o futuro? Qual o seu grau de preocupação em relação à possibilidade desse cenário se agravar, no que diz respeito à violação de direitos e ao crescimento dos discursos de ódio e intolerância?
Enrico de Freitas: Eu acho que se não houver uma reação forte da sociedade civil esse cenário tende a se agravar. Aquelas pessoas que pensavam que é legítima a tortura hoje se sentem com a possibilidade de afirmar isso publicamente, legitimando atos de barbárie. Neste aspecto, é essencial que a sociedade civil reaja a isso, seja por meio de manifestações públicas, seja pela criação de fóruns e outros espaços para denunciar essas práticas, dentro dos meios legais e democráticos. Se não acontecer isso acredito que a tendência é esse discurso ficar cada vez mais reforçado.
Isso é muito grave, pois pode levar a inúmeras violações de direitos humanos, especialmente contra pessoas e grupos sociais em situação de vulnerabilidade. A gente já vê isso de uma forma mais cotidiana com ataques a comunidades indígenas, aumento da tensão e da violência no campo, aumento da intolerância nas cidades às pessoas em situação de rua, como se elas estivessem nas praças por opção. Esse problema se agrava na medida em que há uma diminuição das políticas públicas voltadas para essas pessoas em situação de vulnerabilidade. A tendência é que elas fiquem cada vez mais vulneráveis, sendo obrigadas a buscar a sua sobrevivência da forma que conseguem. As pessoas vão morar na praça ou na rua porque não há uma política pública de moradia e de assistência social adequada.
Nós temos atuado, junto com a Defensoria Pública, na busca de soluções no plano de políticas públicas que sejam implementadas tanto no plano federal, quanto no estadual e municipal para essas pessoas. Já promovemos audiências públicas também com o mesmo objetivo.
Sul21: O Ministério Público é uma instituição relativamente nova. Considerando a história da instituição já houve, na sua avaliação, um período como o que estamos vivendo agora? Há um clima de enfrentamento entre as próprias instituições. Há decisões recentes do MP que batem de frente com o Executivo, como as relativas à autonomia universitária. Já houve algum momento com um clima como este?
Enrico de Freitas: O Ministério Público, com essa formatação de defensor dos direitos do cidadão e da ordem democrática, é uma instituição nova no Brasil, por conta da Constituição de 1988. Estou no Ministério Público há 15 anos. Pelos relatos que eu tenho, já houve situações em que houve uma sucessão de medidas que contrariaram o Executivo. Na época do governo Fernando Henrique, por exemplo, ocorreram inúmeras ações. Na época do governo Lula também. Talvez hoje elas tenham uma repercussão maior por conta desse clima de animosidade que o país vive. Tudo que se faz acaba sendo tratado dentro do clima de amigo x inimigo, o que para nós não tem justificativa. Nós trabalhamos dentro dos marcos do par legal/constitucional ou ilegal/inconstitucional. Agora, estamos trabalhando com questões mais primárias, como a da censura, que a gente não via desde 1988.
Se um determinado governo implementa certas medidas e não compreende, por exemplo, o papel constitucional de um decreto autônomo, exorbitando na sua utilização, a gente acaba tendo que atuar mais fortemente para isso voltar à sua normalidade. Com as decisões judiciais que vão demonstrando que esse caminho é inaceitável do ponto de vista constitucional, a tendência é que se use mecanismos previstos na Constituição em sua forma correta, sob pena de sucessivas derrotas judiciais por parte de quem edita atos ilegais.