Numa rara entrevista, o escritor de 81 anos fala de seu novo livro e de como o medo da Guerra Fria foi substituído pela demonização do Islã.
Publicado originalmente no site da BBC.
Em uma rara entrevista, John le Carré criticou a “lacuna de credibilidade” entre as declarações feitas por aqueles que têm autoridade e o que as pessoas comuns acreditam.
Aos 81 anos, o autor de livros como O Jardineiro Fiel e O Espião que Sabia Demais descreveu como a generalizada “demonização do Islã” substituiu as ansiedades da Guerra Fria que moldaram seu trabalho anterior.
O 23º romance de Le Carré, A Delicate Truth, Uma verdade Delicada, conta a história de uma operação de contraterrorismo para seqüestrar um comprador de armas jihadista em Gibraltar.
“Há raiva [no livro], há frustração e há impaciência, principalmente com relação aos britânicos”, disse ele.
“É realmente cômico ler a acusação ocasional que surgiu nos Estados Unidos, agora, de que eu tenho uma postura antiamericana. Eu sou antinada. Estou apenas tentando analisar a nossa psicologia coletiva no momento, que é muito confusa.”
“E essa toada thatcherista – a ideia da Grã-Bretanha ainda como uma espécie de grande protagonista no cenário político do mundo – essas coisas me frustram e irritam.”
Ex-funcionário do Ministério das Relações Exteriores e espião, le Carré ganhou proeminência internacional com O Espião que Veio do Frio, passado na Guerra Fria. Ele escreveu uma série de best-sellers que ajudaram a definir o gênero do thriller de espionagem.
Alguns críticos descreveram a queda do Muro de Berlim e o colapso do comunismo soviético como suas nêmesis. Mas le Carré disse que a história tem sido sua “salvação”, como escritor, com maquinações políticas em torno da “guerra ao terror” fornecendo um novo pano de fundo para seus thrillers.
“Eu estava cansado de escrever sobre a Guerra Fria. Achava que a Guerra Fria já havia acabado quando o muro caiu e eles estavam sobrevivendo diante de uma realidade que havia terminado”, disse ele.
“O que estamos observando, entretanto, é o retrocesso de uma engrenagem. É a demonização do Islã e a tentativa dos fundamentalistas de ambos os lados – se quiserem – de transformar o Islã em um inimigo tão monstruoso e perigoso, para nós, como era o comunismo soviético”.
Le Carré se recusa a permitir que seus livros sejam inscritos em prêmios literários e pediu para ser retirado da lista do Man Booker Prize em 2011. Mas ele é reconhecido internacionalmente, com best-sellers traduzidos para dezenas de línguas e 12 deles adaptados para TV, cinema ou rádio.
Ele creditou o ceticismo público da autoridade e a contação de histórias à moda antiga como chaves de seu sucesso perene.
“Eu acho que cada vez mais, apesar do que nos dizem sobre o mundo ser aberto à comunicação, há uma alienação terrível para o homem comum entre o que lhe falam e no que ele secretamente acredita.”
“Eu quero ser como Ford Madox Ford. Quero conversar com alguém ao lado de uma lareira – e, se ele estiver se remexendo na cadeira, eu sei que não estou fazendo meu trabalho. Eu sou um contador de histórias e eu sei que a maioria das pessoas gosta de uma história.”
Le Carré disse que sua família está autorizada a dizer-lhe francamente se ele perdeu o dom da escrita, mas ele não tem planos de parar. Apesar da aclamação da crítica, afirma que seu mais recente trabalho é um trampolim para seu 24º romance.
“Para chegar ao próximo livro, eu tinha que escrever este. Está feito. Agora eu posso seguir em frente, agora eu posso fazer algo melhor. Para mim, não era um ‘retorno à velha forma’. É um sentimento de que eu fiz um bom trabalho com esse material e eu realmente me apaixonei pelos personagens.”
“Há alguns livros que eu escrevi de que eu mal me lembro agora. Isso é bastante natural em minha idade avançada. Mas desse eu sei que vou me lembrar.”