O Bonde de Jesus e o “narcopentecostalismo”: racismo e intolerância religiosa no Brasil da Era Bolsonaro

Atualizado em 30 de agosto de 2019 às 16:41
Terreiro destruído no Rio de Janeiro

POR ANA KEILA MOSCA PINEZI, professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), e ANDREW CHESNUT, professor da Virginia Commonwealth University

A história brasileira, desde o Brasil colonial, é marcada pela escravidão de negros vindos da África e pelo racismo que se tornou, desde então, institucionalizado e, portanto, estrutural da constituição social do país.

Assim, qualquer manifestação cultural que tenha remeta à identidade afro-brasileira é vista como algo demoníaco, associado ao mal, à magia negativa, ao mundo dos seres espirituais malignos.

Capoeira, samba, congada, carnaval, maracatu são vistas como manifestações associadas ao mundo do mal, mesmo que sejam extremamente populares no Brasil, mas é no plano das religiões de matriz africana que a intolerância e o racismo, entrelaçados, mostram sua face mais violenta.

Sabe-se que no Brasil a expansão do neopentecostalismo deve-se não apenas ao proselitismo por meios de comunicação de massa, como rádio e TV, mas também pelo proselitismo em espaços sociais como é o caso dos presídios. Tradicionalmente, os presídios eram locais de proselitismo de grupos evangélicos de tradição protestante.

Com o crescimento acelerado do neopentecostalismo, sobretudo em áreas periféricas das metrópoles, os presídios passaram a ser o locus de atuação proselitista de grupos neopentecostais que, inclusive, recebem em sua igrejas traficantes “convertidos” que lhes oferece, em troca do acolhimento e acobertamento, proteção.

No caso específico das favelas cariocas, estudos apontam há algum tempo que a presença de igrejas neopentecostais nesse espaço trouxe para dentro dela traficantes que outrora estavam mais próximos e mais identificados com religiões de matriz africana.

A “conversão” desses “bandidos de Jesus” possibilitou que eles tivessem uma visão positiva por parte de moradores das favelas e gozassem de um prestígio no interior dessas igrejas cuja moeda de troca é a proteção da membresia e da cúpula bem como a manutenção financeira delas.

Dessa forma, o pertencimento religioso dos traficantes pode, inclusive, alavancar seus “negócios”, sem que a imagem deles seja prejudicada perante a população local, em especial a dos frequentadores da igreja.

Os laços, na verdade, que se formam por meio da religião possibilitam proteção mútua, em que a lei do silêncio é conquistada não de maneira impositiva, mas como uma resposta de reconhecimento e gratidão à segurança que os “bandidos de Jesus” podem e oferecem à comunidade religiosa.

Sabe-se que o discurso neopentecostal, calcado na Teologia da Prosperidade e Saúde, tem como ênfase elementos de ataque a outras religiões que lhes possa fazer concorrência, como o catolicismo.

No caso das religiões de matriz africana, o discurso neopentecostal é ainda mais agressivo, alimentando fortemente o imaginário brasileiro de que são religiões demoníacas, associadas ao maligno, à magia negativa e que, portanto, segundo essa visão, devem ser combatidas e destruídas.

Os membros da igreja se tornam, a partir desse discurso, agentes divinais que devem destruir terreiros, imagens das divindades das religiões afro-brasileiras. Nessa guerra não só discursiva, os narcotraficantes “convertidos” são os soldados mais poderosos, com suas redes de bandidagem.

Entre os “bondes” criminosos (associações criminosas, ligadas ao narcotráfico, assim chamadas nas favelas cariocas), destaca-se o que ficou famoso nos últimos dias no Rio de Janeiro: o “bonde de Jesus”.  21 traficantes desse bonde atuavam como terroristas religiosos, atacando terreiros de candomblé da região carioca de Duque de Caxias.

Dentre esses 21, 8 foram presos e um morto pela polícia na penúltima semana de agosto. O chefe do “bonde de Jesus”, conhecido como “Peixão”, é também membro do Terceiro Comando Puro (TCP), organização criminosa poderosa ligada ao tráfico carioca, e pastor.  

O TPC é a terceira mais poderosa das organizações criminosas no Rio de Janeiro e tem forte influência Pentecostal, como já apontamos. Ao que parece, o TCP nasceu de uma divergência com o Comando Vermelho na década de 1980. Fernando Gomes de Freitas, conhecido como Fernandinho Guarabu, hoje em dia é um dos chefes mais proeminentes da quadrilha.

Em 2007, a polícia estimou que ele ganhou cerca US$ 36 milhões ao mês com o tráfico de drogas e com “negócios” no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, sede de operacões da banda de criminosos. Nesse mesmo ano, Fernandinho converteu-se ao Pentecostalismo e, como prova do “nascimento de novo”, ele tatuou, em letras maiúsculas, o nome “Jesus Cristo” em um de seus braços.

Ignorando suas próprias atividades satânicas, o TPC, com o bonde de Jesus, realiza uma campanha terrorista contra os terreiros de Umbanda e de Candomblé nos bairros sob o seu comando. Nos presídios, onde muitos dos traficantes convertem-se ao neopentecostalismo, os pastores satanizam as religiões afro-brasileiras, pregando que são os exus da Umbanda, por exemplo, que são a causa do sofrimento nas suas vidas.

Cumpridas suas sentenças, os novos convertidos se integram aos bondes de Jesus que invadem os terreiros com o propósito de expulsá-los do bairro.

A guerra santa contra os pais e as mães-de-santo não só tem a finalidade de extirpar os “espíritos malignos” do bairro, mas também fortalecer o domínio dos pentecostais, colocando sua fé evangélica como hegemônica nos bairros sob o controle desses criminosos “de Jesus”.

Mesmo que a perseguição dos umbandistas e candomblecistas por parte dos pentecostais e neopentecostais ocorra há mais de uma década, observa-se um incremento nas últimas invasões e destruições feitas nos terreiros no Rio de Janeiro desde o início da gestão do presidente Jair Messias Bolsonaro.

A representação do enviado contemporâneo divino, o atual salvador da pátria dos evangélicos, Bolsonaro elegeu-se com 70% do voto evangélico e, indubitavelmente, com mais de 80% do eleitorado Pentecostal e neopentecostal que constitui 75% dos evangélicos brasileiros.

Com um presidente que partilha sua fé evangélica, tendo sido batizado no Rio Jordão por um pastor pentecostal, os bondes de Jesus se sentem mais potentes que nunca para eliminarem os terreiros das suas zonas de influência.

Pode-se prognosticar, portanto, que a guerra santa feita por pentecostais e, em especial, por neopentecostais por intermédio de “bondes” do narcopentecostalismo contra as religiões afro-brasileiras só se intensificarão durante o mandato de Bolsonaro.