Publicado na RFI
POR MÁRCIO RESENDE
Ao defender a ex-presidente chilena Michelle Bachelet dos ataques de Jair Bolsonaro, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, maior aliado do atual governo brasileiro na América Latina, marcou um limite para as críticas do ex-deputado de extrema-direita: a do desrespeito. Piñera se esforça para encarnar uma direita moderna e democrática em seu país.
Correspondente da RFI em Buenos Aires
Não é a primeira vez que Piñera toma distância de Bolsonaro em matéria de direitos humanos, afastando-se do ex-ditador Augusto Pinochet, referência para o brasileiro. Os insultos de Bolsonaro à memória do pai de Bachelet, assassinado pela ditadura chilena (1973-1990), e também à autoridade dela enquanto Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos ultrapassaram novamente a linha vermelha. Piñera, representante da direita chilena e opositor à socialista Bachelet, pediu respeito para a ex-presidente.
“É de público conhecimento o meu permanente compromisso com a democracia, com a liberdade e com o respeito pelos direitos humanos, em todo os tempos, lugares e circunstâncias. Porém, sem prejuízo dos variados olhares que possam existir em respeito aos governos que tivemos na década de 70 e 80, sempre estas visões devem ser expressadas com respeito pelas pessoas”, disse Piñera para, em seguida, concluir: “Em consequência, não compartilho em absoluto a alusão feita pelo presidente Bolsonaro em relação a uma ex-presidente do Chile e especialmente em um assunto tão doloroso como a morte do seu pai”, sentenciou.
“Piñera nunca apoiou Pinochet. Para Piñera é inaceitável que defendam os violadores de direitos humanos”, explica à RFI o sociólogo e cientista político chileno, Patricio Navia.
Na coligação governista de Piñera, o partido mais à direita é a União Democrata Independente(UDI), cuja linha ideológica defende Pinochet. Dois dos seus senadores, incluída a presidente da UDI, estiveram com Bolsonaro no Rio de Janeiro durante a campanha eleitoral do brasileiro. Mas Piñera lidera um processo de modernização da direita chilena, afastando-se do chamado “pinochetismo”.
“Um dos objetivos de Piñera é fazer com que a direita chilena abandone o legado de Pinochet, especialmente no aspecto autoritário. De alguma forma, ele tem conseguido porque, para os líderes mais jovens da direita chilena, o ponto de comparação não é Pinochet, mas Piñera”, destaca Navia.
Piñera sempre recorda que, no referendo de 1988 que acabou com a ditadura militar de Pinochet, ele votou pelo “Não” – não à continuidade do regime.
“Para a direita chilena, elogiar as reformas neoliberais de Pinochet, mas criticar as violações aos direitos humanos da ditadura tem sido o discurso dos últimos 30 anos. Cada vez que Bolsonaro fizer coisas parecidas, a direita chilena terá um discurso já pronto porque é o que usaram contra o próprio Pinochet”, indica Navia.
O aliado de Bolsonaro condenou a postura do brasileiro, que, na semana passada, também faltara com respeito em relação à esposa do presidente francês, Emmanuel Macron, em meio a uma discussão sobre o aumento dos incêndios na Amazônia. O próprio Piñera estava ao lado de Macron quando o presidente francês foi indagado pela imprensa sobre os comentários irônicos de Bolsonaro.
Assim como com Macron, Bolsonaro também acusou Bachelet de intrometer-se na política interna e na soberania do Brasil ao expressar a sua preocupação com a democracia no país. A alta comissária da ONU indicou “uma redução do espaço democrático no Brasil” e citou “ataques a defensores dos direitos humanos”, “restrições ao trabalho da sociedade civil” e “aumento da violência policial”.
Em resposta, Bolsonaro disparou contra o pai de Bachelet, assassinado pela ditadura Pinochet. “Senhora Michele Baquelet (sic), se não fosse o pessoal do Pinochet derrotar a esquerda em 1973, entre eles o seu pai, hoje o Chile seria uma Cuba. Passar bem Dona Michelle”, atacou, acusando ainda Bachelet de estar “defendendo direitos humanos de vagabundos”.
Em Santiago, prestes a viajar ao Brasil para reunião bilateral nesta quinta-feira (5) com o chanceler Ernesto Araújo, o ministro das Relações Exteriores do Chile, Teodoro Ribera, emitiu uma nota, distanciando-se das declarações de Bolsonaro. “O Chile e o Brasil têm interesses comuns e uma relação histórica que transcende conjunturas e governos.”
Estratégia de Bolsonaro é ruim para toda a região
“Acredito que, para a democracia na região, Bolsonaro não é um bom exemplo. Usa a estratégia da confrontação interna e externa. Não unifica. Os países precisam de um líder inquestionavelmente democrático no Brasil para fazer avançar suas próprias democracias”, observa, Navia, professor da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.
“E mesmo para muitos militares na América Latina, Bolsonaro é um ponto de preocupação porque eles querem ser modernos, querem deixar para trás o peso das violações aos direitos humanos. Pagaram custos altos e conseguiram limpar a imagem dos últimos 30 anos. Que Bolsonaro venha agora falar bem dos governos militares, é um custo para o resto das Forças Armadas”, aponta Navia.
Reincidente
Opositor ao golpe militar durante o bombardeiro comandado por Pinochet ao Palácio Moneda, sede do governo chileno, Alberto Bachelet foi preso, acusado de traição à pátria e torturado pelos seus próprios companheiros militares, até morrer hospitalizado em 12 de março de 1974, logo depois de um interrogatório.
A filha Michelle foi perseguida, torturada junto com a mãe, exilada na Alemanha e na Austrália. “Colocaram fitas adesivas e óculos sobre os nossos olhos. Não podíamos ver. Torturaram-me e me bateram, mas não me colocaram na ‘grelha’ (mesa de metal para choques elétricos)”, contou a socialista. Num quarto próximo, a mãe foi torturada e mantida quase uma semana sem água nem comida.
Em março, durante viagem ao Chile, Bolsonaro exaltou Pinochet. Na ocasião, após a visita do brasileiro, Piñera classificou como “tremendamente infelizes” as declarações de Bolsonaro em matéria de direitos humanos.
Durante a campanha eleitoral de Bolsonaro, Piñera elogiava, publicamente, o plano econômico de Bolsonaro.
“Temos convergências importantes como integração econômica e modernização da economia”, destacava Piñera. “Mas temos discrepâncias profundas em relação à conduta discriminatória ou racista”, diferenciava-se.
“Há frases em matéria de condutas homofóbicas, ou pouco respeitosas com as mulheres, ou pouco comprometidas com a democracia, com as que eu definitivamente discordo”, defendeu-se Piñera perante as críticas internas.